Por Natália Leon Nunes*

Meia noite e meia do dia 31 de março de 2020. Diante da tela do computador, tento escrever um texto sobre o aniversário do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. Na internet, ao contrário dos últimos anos, ninguém fala sobre esse tema. O assunto único é o coronavírus: o aumento de pessoas infectadas em São Paulo, a notícia da ditadura instaurada por Orban na Hungria sob pretexto de controlar a pandemia no país, a possível demissão do ministro da saúde.

No Irã, há valas enormes onde são enterrados cadáveres de vítimas da doença. Tão grandes que é possível vê-las na imagem capturada por um satélite. Na Itália, os corpos são levados embora das cidades para serem incinerados longe de suas famílias. O governo francês exige que os cidadãos preencham documentos explicando as razões pelas quais precisam sair de casa. Nos hospitais espanhóis, onde não há mais aparelhos respiratórios e leitos para todos os infectados, profissionais da saúde devem escolher quem continua a viver – o que significa que escolhem quem vai morrer. Quando recebo este tipo de notícia pelo celular, deslizo rapidamente o dedo sobre a tela para que elas desapareçam. Nos meus sonhos da quarentena, Ah! entretanto, percebo que estou me despedindo das pessoas próximas, como se eu ou elas pudéssemos ir embora a qualquer momento.

Minhas mãos estão machucadas. Mesmo sozinha dentro de casa, sem contato com o mundo exterior, lavo-as freneticamente. Quando acendo a luz ou fecho a porta, utilizo meu cotovelo, evitando que meus dedos toquem qualquer superfície. Em duas semanas houve uma reeducação do meu corpo – corpo este que passou a ser visto como suspeito e capaz de portar a doença e a morte daqueles que me rodeiam.

Não há como saber quando o isolamento acaba e voltamos à normalidade. Os mais pessimistas alertam que a quarentena nos apresenta a nova normalidade, pois o mundo tal como era antes definitivamente acabou. O reverso do pessimismo não é o otimismo, mas a negação. Pessoas que saem às ruas como se não corressem perigo e têm a triste crença de que os apavorados estão exagerando. No futuro, imagino, quando contarmos sobre a pandemia às gerações mais novas, pode ser que existam os que minimizem o que tem acontecido: não foi nada demais.

Pela primeira vez, depois de anos, não consigo articular um texto sobre a memória da ditadura no Brasil. Só escrevo sobre a pandemia, que atravessa as falas de todas as pessoas com quem converso.  Amanhã ou depois, quem sabe, poderemos sair de casa e nos abraçar novamente. A vida contaminada pelo medo da morte dos que estão no grupo de risco, pelo confinamento, pelo autoritarismo dos governos como resposta ao caos e por tantos outros sentimentos que me visitam diariamente terá acabado, mas não sem deixar vestígios. Falar do passado é sempre falar a partir de um aqui e um agora. Na tentativa fracassada de falar da marca traumática deixada pela ditadura militar, me vejo falando ininterruptamente sobre este trauma do presente. 1964 e 2020 são datas de acontecimentos históricos singulares e muito distintos. Para mim, todavia, cuja vida começou depois do fim da ditadura, o presente ensina sobre o que, até então, eu só tinha escutado falar: o discurso incessante sobre o mesmo assunto não pelo desejo de lembrá-lo, mas pela impossibilidade de esquecê-lo. Encontro inusitado entre dois tempos, o assustador agora promove, pela via do quase esquecimento, a possibilidade de compreender essas palavras de forma mais encarnada: contar o que vivemos, combatendo o futuro revisionismo e os olhares que relativizam o horror, o sofrimento e a morte, para que nunca se esqueça, para que nunca, nunca mais se repita.

*Natália Leon Nunes é professora de filosofia e psicanalista.