Fisher (1968-2017) em 2013 publicou um breve texto chamado Deixando o Castelo dos Vampiros que, muito embora não seja uma das suas obras[2] mais conhecidas, produz interessantes inquietações acerca do realismo capitalista. Fisher produziu textos críticos com uma necessária criatividade imaginativa, com autêntica preocupação e grande sensibilidade às mazelas de nosso tempo.

Neste artigo, Fisher defende a necessidade da saída do Castelo dos Vampiros. E, muito embora quando falamos de vampiros, abre-se um vasto hall de criaturas desmortas sobre as quais poderíamos repousar o nosso imaginário, Fisher aponta uma direção bastante particular destes vampiros: trata-se de vampiros libidinalmente investidos numa vida condominial. São sobre essas criaturas desmortas, no limiar entre o morto e o vivo que convivem em seu castelo, que o autor se endereça neste artigo. Lembrando que Benjamin Noys (2018), prescreve os vampiros: “como uma das figuras dos mortos-vivos, traça uma intimidade entre a vida e a morte, algo que também pode ser encontrada no vitalismo. Enquanto o vitalismo pode ser considerado desafiadoramente do lado da vida e excluindo a morte, o vitalismo se intromete também no domínio da morte e tenta reivindicá-la por toda a vida”[3]. Poderíamos ler aqui a prescrição inquietante (unheimlich), oriunda da psicanálise, porém o refinamento posterior feito por Fisher em Estranho e Esquisito (2017), provavelmente o faria optar pela chave de leitura da esquisitice (eerie) destas figuras.

Fisher em seu artigo, aponta que temos regras claras neste condomínio vampiresco e aos que lá se identificam e habitam:

 

A primeira lei do Castelo dos Vampiros é: individualizar e privatizar tudo.

A segunda lei do Castelo dos Vampiros é: fazer o pensamento e a ação parecerem muito, muito difíceis.

A terceira lei do Castelo dos Vampiros é: propagar tanta culpa quanto puder.

A quarta lei do Castelo dos Vampiros é: essencializar.

A quinta lei do Castelo dos Vampiros: pense como liberal (porque você é um).

 

E, se nos permitirmos mergulhar na esquisitice tanática (eerie Thanatos) deste Castelo dos Vampiros, o melhor filme para conseguirmos falar sobre isto é o incrível: O que fazemos nas sombras? (What We Do in the Shadows) (2015) de Jemaine Clement, Taika Waititi. Trata-se de um filme que acompanha a não-vida ou quem sabe, a desmorte dos vampiros Viago, Deacon e Vladislav. Sim, eles são vampiros. Cada um deles de um momento histórico diferente e o filme remonta em flashbacks a história e temporalidade de cada um dos seus personagens. E, à medida em que acompanhamos a história dos personagens principais, numa estética de reality-show da pior espécie possível, enxergamos os reversos do nada descritos por Alenka Zupancic, nos quais o cômico e o horror, parecem se encontrar e se distanciar[4] na lógica que rege estes afetos. Vemos nas figuras vampirescas, culturalmente conduzidas na modernidade pelo apelo de Bram Stoker, a descrição da horrorosa glória do vampiro, essa criatura demoníaca, extremamente poderosa, que sugava o sangue de suas vítimas, que numa aproximação Nietzschiana agiam como ameaçadoras ‘aves de rapina’ fazendo de suas vítimas humanas, suas deliciosas ovelhas. Mas, como imortais, assistem a realidade passando diante de seus olhos não tão vivos e vagarosamente, tornam-se relíquias de um passado. Seguimos no filme de Clement e Waititi, de flashback em flashback, a cada período histórico dos seus personagens, até chegar nos dias de hoje, alcançando o insight deste vampiro de hoje em dia, a figura da decadência que habita este condomínio que um dia foi um castelo. Os vampiros neste filme, ainda que imortais e perigosos predadores da vida, são ilustrados em sua mundanidade, em seus esforços para se manterem moralmente em seus lugares diante da alteração das coordenadas da realidade. E por fim, acabam nos convidando para o paradoxo subjacente a sua existência vampiresca.

Quando Fisher lança essa crítica aos twitteiros da classe média e alta inglesa, aos jovens acadêmicos que adoram “falar difícil”, à gana moralizante, excludente; o que encontramos são estes fervorosos defensores do identitarismo da lógica do castelo (que hoje não é mais um castelo, mas provavelmente algum condomínio, prédio…). Há algo da perpetuação da realidade, enquanto a vampiresca realidade pequeno-burguesa. Não por menos, essa é uma consequência lógica de uma de suas premissas centrais, a saber, que é mais fácil pensar o fim do mundo, do que o final do capitalismo. O realismo capitalista encontra estratégias de perpetuação e manutenção. E, Fisher quando elege os vampiros enquanto seus residentes, sabe exatamente o que está se propondo, ele diz do limiar entre o vivo e o morto, tão habitual à este realismo capitalista.

É neste sentido que a defesa de Fisher é por “atividades pré-figurativas pelas quais os modos burgueses de subjetividade são desmantelados e uma nova universalidade começa a se construir” (2013). E marcando que “precisamos aprender, ou reaprender, como construir a camaradagem e a solidariedade em vez de fazer o trabalho do capital para ele, condenando e abusando uns aos outros. Isto não significa, naturalmente, que devamos sempre concordar – pelo contrário, devemos criar condições em que o desacordo possa ocorrer sem medo de exclusão e excomunhão” (op.cit). Neste sentido, a chamada crítica de Fisher, parece ir para além da clássica leitura de que nós somos os vampiros. A sua leitura crítica, ao nos aproximarmos da paradoxal figura do vampiro, nos viabiliza pensarmos em caminhos para sermos os caça-vampiros por quem esperávamos. É enxergar um caminho para pensarmos, juntos, na classe dos vampiros e nos permitir questionar a estrutura vampírica subjacente e suas profundas marcas nós mesmos. Enfatizando que, para Fisher não se trata aqui de moralismo ou identitarismo, mas sim, da identificação e da direção crítica à estrutura de classes – que fere a todos, mesmo aqueles que materialmente lucram com ele – como disse Fisher, e esta precisa ser destruída. Uma resignificação criativa e possivelmente interessante para ser explorada simbolicamente, para que possamos criticamente operar diante do realismo capitalista, pode muito bem vir da figura do vampiro.

 

Notas:

[1] Esse texto foi apresentado no Colóquio Mark Fischer: Realismo espectral. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ, setembro de 2018.

[2] Como é a obra “Realismo Capitalista” (ainda sem tradução em português), os Fantasmas da minha vida: escritos sobre a depressão, Hauntology (Assombrologia), Futuros Perdidos ou o Estranho e o Esquisito (Weird and the Eerie).

[3] Texto em Ensaios sobre os mortos-vivos (org. por Rodrigo Gonsalves e Diego Penha) no prelo para 2018.

[4] Zupancic, A. Reversos do Nada In: PENHA, D.; GONSALVES. R. Ensaios sobre os mortos-vivos. Vol. II. São Paulo: Aller Editora, no prelo.

 

Sobre o Autor:

Psicanalista. Graduado em Psicologia e Filosofia. Doutorando em Filosofia, Teoria Crítica e Artes pela European Graduate School (EGS). Co-autor da obra Combate à Vontade de Potência (2016).

É membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, membro editor da revista Crise e Crítica (América Latina), do blog político Lavra Palavra e integra o corpo editorial da revista virtual Lacuna: uma revista de psicanálise.

E-mail: rodrigo.gonsalves@egs.edu