O tema da Alienação Parental (AP) deve ser tratado de acordo com a alta complexidade que ele merece em vez do modo banal com o qual vem sendo utilizado, normalmente nas situações de litígio familiar como instrumento de acusação de um genitor contra o outro. Em vez de guiarmo-nos pela lógica binária e maniqueísta que frequentemente conduzem as disputas judiciais de família, pretendo inicialmente demonstrar o panorama sócio histórico de seu surgimento para em seguida recorrer a outros aportes teóricos, em particular a psicanálise, que colocam em xeque certas aproximações indevidas entre o direito e os saberes psi. De antemão deixo claro, portanto, meu posicionamento com base nos cerca de vinte anos de atuação como psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A saber: faz-se necessária a interlocução com o campo do direito desde que sejam preservadas as profundas diferenças conceituais, como poderíamos encontrar, por exemplo, a propósito do que seja verdade ou sujeito para o direito, de um lado e de outro lado, para a psicanálise ou, se preferirem, para boa parte da psicologia. Para ficar num só exemplo, o sujeito do Direito e o Sujeito do desejo não são idênticos, quando não contraditórios.

A grande dificuldade em abordar o tema da AP é o modo como a discussão é capturada por relatos pessoais, em geral, marcados por grande sofrimento cujos contornos são invariavelmente dramáticos. Não se trata de sermos insensíveis à dor psíquica de pais, mães, avós e avôs que são afastados de filhos ou netos, tampouco a de crianças e adolescentes convencidos a repudiá-los. Não há como negar que, entre tantos casos que chegam às Varas de Família, haja crianças e adolescentes realmente afastados de familiares por ódio e ressentimento de seus guardiões. Sem dúvida central, em situações assim caberia ao Estado protegê-los em face do forte risco de prejuízo emocional em que se encontram. Contudo, a recusa da criança em relação ao pai ou à mãe é multifatorial, não devendo ser prontamente associada a uma suposta manipulação da pessoa de sua referência. Não podemos fugir à máxima de que cada caso é um caso e, assim, os tribunais não podem prescindir de suas equipes técnicas, incluído o psicólogo. Donde lamento que os concursos públicos estejam ficando cada vez mais rarefeitos.

Há confusões conceituais entre AP e síndrome de alienação parental (SAP), tendo sido aquela divulgada no Brasil como sinônimo desta última, desconsiderando as diferenças de Gardner em relação a outros autores. Contudo, pretendo me deter no conceito de SAP tal como proposto por Gardner na tentativa de buscar as condições de surgimento de suas ideias cujo prestígio meteórico foi o suficiente para modificar leis em diversos países, produzir conhecimento entre diversos campos do saber, extrair supostas verdades através das formas jurídicas e, por fim, produzir subjetividades.

Criada na década de 80, Gardner acreditava que a Síndrome de Alienação Parental (SAP) tinha profunda associação com a disputa de guarda judicial de filhos, cuja manifestação central seria o repúdio destes últimos em relação a um de seus genitores, que, em razão dos costumes, costuma ser o pai. Na medida em que o ódio em relação ao não guardião fosse desprovido de motivo razoável, Gardner supunha que, em sua etiologia, haveria a campanha difamatória do genitor que, por ressentimento e mágoa, encabeçaria, nos termos empregados pelo psiquiatra, lavagem cerebral, programação ou doutrinação sobre a criança. A campanha poderia atingi-la a tal ponto que ela poderia ser afetada em suas reminiscências, passando a deter, nos casos mais graves, falsas memórias de que teria sido abusada sexualmente pelo genitor alvo da alienação.

O psiquiatra norte-americano não faz nenhuma apreciação sobre o inconsciente, cuja descoberta por Freud na virada do século XIX para o XX partiu das reminiscências das pacientes histéricas sobre experiências traumáticas de caráter sexual, supostamente vividas na infância. Sabemos desde Freud que a realidade psíquica possui para o sujeito valor de verdade e está ligada a processos inconscientes, em especial, a fantasias que se articulam desde a infância. Tal passo foi fundamental para a descoberta do inconsciente e, consequentemente, para uma verdadeira revolução no campo da racionalidade humana que marca o século seguinte até o atual. Todavia, isso é inteiramente negligenciado na abordagem dos elementos constitutivos da SAP.

Para Gardner, a síndrome corresponde a comportamentos que combinam essencialmente dois fatores: a programação sobre a criança por um genitor para denegrir o outro e as contribuições criadas pela própria criança em apoio à campanha infamante. Nesse contexto, a hostilidade da criança seria sem motivo racional ou consciente que a justifique.

Gardner possuía clara intenção de que a SAP fosse incorporada aos manuais psiquiátricos, lamentando a recusa dos avaliadores em ações de disputa de custódia de crianças em utilizá-la como diagnóstico. A despeito das ambições do psiquiatra norte-americano, a SAP não foi incorporada pelos manuais de classificação psiquiátrica, tampouco reconhecida como doença pela Organização Mundial de Saúde. Na visão dessas entidades, há falta de fundamentação científica para comprovação da existência da síndrome. Ainda assim, segundo Sottomayor, “os técnicos e psicólogos que fazem relatórios ou avaliações, em processos de regulação das responsabilidades parentais, inspirados nas teorias de Gardner, recorrem a este sistema de diagnosticar doenças psiquiátricas graves na criança e na mãe, sem para tal terem nem qualificações nem base científica”[1].

Gardner supunha uma relação entre os sintomas da criança e as disputas judiciais, chegando a atribuir maior eficácia às decisões judiciais do que às ações do terapeuta. Vale destacar que o apoio do judiciário sobre a medicina não é algo recente, haja vista as perícias psiquiátricas que marcaram a criminologia positivista do século XIX e que, através dos primeiros tratados de psicopatologia sexual, foram fundamentais para a gestão médica da população e de governo sobre a vida humana[2]. Contudo, a novidade introduzida pela invenção de Gardner que, cabe ressaltar, conquistou ampla aceitação nos códigos jurídicos mesmo sem ingressar nos manuais psiquiátricos, foi a entrada num só golpe do discurso psiquiátrico e jurídico na esfera cível, especificamente no Direito de Família, atingindo em cheio a aliança entre pais e filhos.

Num contexto de dissolução legal de uniões conjugais, de ingresso do homem na esfera dos cuidados infantis, de questionamento dos atributos maternos outrora concedidos à mulher como fato natural, e, por fim, do reconhecimento internacional da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a ideia de alienação parental transformou-se na força motriz para o direito se infiltrar e conduzir as relações familiares, com ênfase particular sobre o laço entre a mãe e a criança.

Apesar de termos no Brasil a lei 12.318 de 2010 que prevê uma serie de sanções cíveis contra a figura do alienador, encontra-se em marcha o clamor por punições mais severas, como por exemplo o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que requer punição criminal contra o chamado alienador, prevendo detenção de três meses a três anos, podendo ser agravado em 1/3 em algumas situações, entre as quais por falsa denúncia de abuso sexual[3]. Será a judicialização em profundidade e, com efeito, a criminalização dos conflitos familiares a solução? Acredito que não, em que pese a intenção do legislador de preservar a saúde mental da criança e do adolescente e valorizar a dimensão do afeto nas relações familiares.

Gardner prescrevia a terapia de ameaça, na contramão de tudo que possamos pensar em termos de manejo do sofrimento infantil e dos sentimentos de ódio e repulsa que a criança dirige a seus genitores. Ao mesmo tempo, ele alertava sobre a explosão norte americana de denúncias falsas de abuso sexual em processos de divórcio. Sem determo-nos nesse ponto, esse fenômeno é discutido por Bauman[4] como resultado da sociedade de consumo. Todavia, a estratégia utilizada pelo psiquiatra era tornar patológico o exercício de direitos legais por parte da mulher que defende os seus filhos, contribuindo, como assinala Sottomayor, “para a desvalorização da palavra das crianças e para a invisibilidade da violência contra mulheres e crianças”, cujo significado ideológico é claro: “a menorização das crianças e a discriminação de género contra as mulheres”[5].

Sujeito e coletividade não podem ser pensados separadamente. Há no plano político e social um campo de batalha entre gêneros que ganha expressão nos discursos e das práticas que gravitam em torno da SAP e da AP. Nada disso entraria em jogo se os homens não se insurgissem contra as tradicionais atribuições de pais de ‘fim de semana’, provedores e fiscais das mães mulheres. Houve mudanças significativas nas últimas duas décadas: a guarda dos filhos deixou de ser atributo exclusivo da mulher, não mais destinada a ser cuidadora natural da prole, ao mesmo tempo em que os homens se voltaram, tardiamente, para o espaço doméstico familiar, passando assim a requisitar a participação nos assuntos de interesse da criança.

Seguindo esse raciocínio, a AP é um vetor capaz de mobilizar práticas jurídicas que permitem a entrada do homem nesse universo outrora exclusivo das mulheres, embora não se limite a ajustar as atribuições e os papéis sócio sentimentais entre pais e mães. A AP termina servindo amiúde como instrumento de discriminação entre gêneros, desequilibrando as relações em favor do masculino na mesma proporção em que a mãe vista como alienadora cai em descrédito até mesmo quando nas ações em que ela pretende proteger a prole.

Gardner não distingue as situações que envolvem os comentários depreciativos da mãe daquelas em que a criança percebe que ela é vítima de maus-tratos, abuso econômico, humilhações e ameaças de seu pai. E mesmo quando a criança não presencia e que ninguém lhe tenha contado os fatos, é possível que ela tenha a intuição do abuso de poder praticado pelo pai contra a mãe durante a vida em comum. Logo, perante a decisão da mãe em divorciar-se, a criança toma o partido da mãe e apoia-a. Ora, pode ocorrer de um dos genitores ter dado todos os motivos do mundo para que os filhos não queiram vê-lo e, assim, contarem com a proteção do outro. O quanto será benéfico à criança a convivência por força da lei a despeito de seus sentimentos? É a pergunta dura que deve ser enfrentada, pois em dadas situações a entrada da lei jurídica pode ser estruturante para a formação da criança como sujeito, porém, em outras ocasiões, pode ser devastadora.

Existem contradições no campo dos direitos da criança e do adolescente que se particularizam nos embates familiares, disfarçadas sob o manto acusatório de AP. Se a objetificação das relações conjugais e familiares sob a pecha de alienação parental deixou os operadores de direito mais confortáveis em seus atos decisórios, foi principalmente porque possibilitou a ampliação do poder simbólico do juiz. Se os protestos da criança se tornam irrelevantes na medida em que ela é vista como alienada, em que medida ela é escutada de fato como sujeito pelos tribunais?

Volto a frisar que não se trata de deixar que as coisas sigam o seu curso mesmo quando a criança é afastada compulsoriamente de seus pais ou familiares. Mas trata-se de fazer frente ao clamor por punições mais severas cujo remédio só faz prolongar a doença. Trata-se igualmente de abordar todo e qualquer caso em sua singularidade radical, pois se a criança manifesta algum sintoma, ele é resposta ao lugar que ela ocupa no desejo dos pais. O sintoma articula-se como linguagem e é como tal que deve ser interpretado. E se a criança responde com seu sintoma, ela também está ali como sujeito.

 

Notas:

[1] SOTTOMAYOR, M. C Uma Análise Crítica da Síndrome de Alienação Parental e os Riscos da sua Utilização nos Tribunais de Família. 2011. Disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/073-107-Aliena%C3%A7%C3%A3o-parental.pdf. Acesso em: 09 fev. 2018, p. 82.

[2] FOUCAULT, M. (1974-1975) Os anormais: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

[3]Projeto de lei.º 4.488, de 2016.

[4] BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[5] SOTTOMAYOR, M. C Uma Análise Crítica da Síndrome de Alienação Parental e os Riscos da sua Utilização nos Tribunais de Família. 2011. Disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/073-107-Aliena%C3%A7%C3%A3o-parental.pdf. Acesso em: 09 fev. 2018, p. 75.

 

Sobre o Autor:

Eduardo Ponte Brandão é psicólogo TJ/ RJ, psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica/ UFRJ. Mestre em Psicologia Clínica/ PUC-Rio. Coordenador do curso de especialização em Psicologia Jurídica AVM/UCAM. Professor do Curso de especialização de psicanálise com crianças ISEP-SEPAI. Pesquisador Doutor da Clínica de Direitos Humanos | BIOTECJUS. Pós-doutorando pelo programa de pós-graduação stricto sensu de psicanálise, saúde e sociedade/UVA.

E-mail de contato: eduardopbrandao@gmail.com