Por Maria Helena Saleme

Psicanalista, professora do curso de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. E-mail: sa-leme@uol.com.br

 

A formação do psicanalista tem suas idiossincrasias. Há várias instituições psicanalíticas que tratam desta função, sendo que não são exatamente iguais. Diferem em vários fatores, privilegiam autores diferentes, e a partir deste ponto, irão se diferenciar em nuances das técnicas, das abordagens da transferência e, de como se dá a análise pessoal do analista e em muitos outros conceitos.

Coincidem em pontos fundamentais:

Respeitam e trabalham com o conceito de inconsciente

  • Concordam com a ideia de que Freud criou um dispositivo de investigação e de “tratamento” clínico.
  • Cuidam para que se mantenham seus princípios e efeitos.
  • Consideram indispensável a análise do analista, a supervisão da clínica e o conhecimento da teoria psicanalítica.
  • Sobretudo, e fundamentalmente, defendem e dão seguimento à postura ética necessária para exercer a Psicanálise.

Essas escolas convergem, divergem, há alguns trabalhos conjuntos, pois a diversidade também é intrínseca e cara à Psicanálise.

A Psicanálise cresceu e tocou muitas outras áreas culturais. Por volta do ano 2000, surgiu uma nefasta novidade na Psicanálise: um grupo religioso, poderoso politicamente, resolveu criar um curso de “formação de analistas”. Também achou por bem se apossar da Psicanálise por meio de sua regulamentação. Preparou, então, um projeto de lei que legislaria sobre o que é, como a Psicanálise deve ser feita, quem é e como é um psicanalista. Com o argumento de evitar a presença de charlatões dentro de nossa área, esse grupo passaria a localizar os verdadeiros e os falsos profissionais. Pensamentos produzidos durante o século XX e nos primeiros 19 anos do século XXI foram ignorados.

A proposta parecia ótima: proteger a população e a Psicanálise dos maus psicanalistas. Essa imagem se transformou rapidamente. Com um olhar mais atento percebeu-se claramente a ausência de qualquer intenção de proteção à população e o objetivo claro de corresponder aos interesses de um grupo específico. Grupo este que tem atitudes antagônicas à tradição psicanalítica.

A comunidade psicanalítica acredita em uma formação que cumpre etapas, mas que nunca termina. Além do conhecimento da teoria psicanalítica, a formação exige o conhecimento de outras ciências humanas e uma participação viva na arte e na cultura geral. Exige supervisão contínua do trabalho do analista em formação e supervisão intermitente toda vez que o analista perceber alguma questão em sua escuta. E tem como ponto fundamental a análise pessoal do analista, ponto importantíssimo da formação.

Vejamos como se dá a formação segundo esta regulamentação: para entrar num curso de formação é exigido que o candidato tenha cursado o Ensino Fundamental, e sua formação necessita de 150 horas divididas em análise pessoal, supervisão e aulas teóricas. Significa uma formação de cinco horas semanais por 30 semanas. Insignificante. Diálogo improvável, diálogo impossível.

Foi assim que, há 16 anos, as entidades mais reconhecidas como formadores de analistas do Brasil inteiro marcaram uma reunião para proteger a Psicanálise da “proteção” deste grupo político/religioso. Questão primeira: como preservar a ética na Psicanálise que vinha sofrendo um golpe letal.

Os representantes destas instituições passaram a reunir-se regularmente para uma articulação de ideias e não fizeram um grupo ou uma instituição, fizeram um Movimento, criou-se o Movimento Articulação.  Pessoas diferentes que se reúnem para trocar ideias sobre a manutenção da Psicanálise nos seus fundamentos e na sua integridade.

As pessoas deste Movimento se informam e buscam informar os passos políticos sobre a pretensa regulamentação. Estudar sobre a formação do analista, sobre os benefícios ou malefícios da regulamentação da Psicanálise, e procurar o sentido desta tentativa de apropriação de nossa teoria e prática.

Divulgamos os frutos de nosso trabalho em reuniões em nossas instituições, participando de congressos, seminários nos quais há interesse no tema e por meio de publicações que relatam nosso trabalho. Recém publicamos nosso segundo livro – Ofício do psicanalista II, um trabalho em conjunto que preserva a singularidade de cada autor.

Temos conseguido também, por meio de diálogo, mostrar aos parlamentares sérios, que esses projetos aviltam a Psicanálise e correspondem aos interesses de um grupo restrito e poderoso.

Afirmamos que tal tentativa de regulamentação é uma forma de matar os princípios fundamentais da Psicanálise e, assim, criar um simulacro fantasmagórico que só preservaria o seu nome. Como todo simulacro, apossa-se das palavras e destrói seu significado.

 

Algumas considerações sobre a formação do analista

Há uma pergunta difícil de responder, mas mais difícil ainda é formulá-la: do que se trata o que sustenta o analista em sua função? O que opera na produção dos efeitos analíticos? Convivemos com questões políticas, de poder, de resistências, mas há algo que se mantém oculto. Resto esse que não se apreende por regulamentos ou ideais.

Analista é uma função a qual se transmite e se aprende. Nesta transmissão há um lugar privilegiado que é a análise do analista. Os efeitos terapêuticos resultam também em formação de analista. A prática analítica não é “ensinável”, mas é passível de aprendizagem. A prática analítica é transmitida.

Essa produção artesanal única que ocorre na formação do analista pode levar à falsa conclusão de que cada qual faz o que bem entende e que urge um regulamento que ponha ordem nesta prática e que estabeleça as hierarquias. E é assim que a formação do analista abre brechas para oportunistas que são acompanhados por pessoas de boa fé. Mas, uma vez introduzida a hierarquia e o autoritarismo na Psicanálise, ela automaticamente se dissolve e deixa de ser Psicanálise. “O dogmatismo protege a ignorância” (Mousthafa Safouan), as atmosferas herméticas promovem a idealização, produzem rigidez do superego e submissão.

Temos uma filiação, uma linhagem, uma história, somos produtos dos encontros. O analista é um elo numa cadeia que se iniciou com Freud e a criação da Psicanálise. Não será por algumas leis que pode haver um psicanalista cujo primeiro elo da cadeia seja Deus e a criação do mundo. Deus não transmitiu a Psicanálise. Portanto, trata-se de uma apropriação oportunista que se serve do aspecto libertário da Psicanálise, de seu funcionamento ético para apoderar-se e paralisar a Psicanálise.

Para quê?

 

Bibliografia

ALBERTI, S.; A. AMENDOEIRA, W.; LANNES, E.; LOPES, A., ROCHA, E. (organizadores) Ofício do Psicanalista: formação versus regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.

SIGAL, A. M.; CONTE, B., ASSAD, S. (organizadores). Ofício do psicanalista II. São Paulo, Escuta, 2019.