Por Fernanda Zacharewicz

Assisti duas vezes ao filme A vida invisível (2019, direção de Karim Aïnouz), dois domingos seguidos. Na semana que os separava, li o livro de Martha Batalha. As duas são obras distintas, acho adequado quando dizem que o filme foi inspirado no escrito; é uma obra que independe do livro. Fiquei então a me perguntar a razão pela qual essa obra tinha me ocupado dessa forma. “Ocupado” é o termo adequado. Igual invasão, ocupação de espaço. Essa obra veio, sem ser chamada, e fincou pé. Não saiu. São já muitas horas às voltas com ela, e mais horas ainda ao sentar-me a redigir este texto.

Ao invés de escrever sobre a condição da mulher nos anos 1950 (tema explícito na obra) e as mudanças que tivemos nos quase setenta anos que separam nossa década e os retrocessos dos últimos tempos — emblematicamente estampado em uma revista de grande circulação, enaltecendo a mulher recatada e do lar —, decidi refletir sobre o sujeito e sua relação com o desejo. Embora esteja mais nítido no livro, é possível perceber também isso na grande tela.

Parto de um extrato do livro que ilustra o que quero aqui desenvolver:

 

Ana e seu Manuel tinham orelhas e não tinham ouvidos, e por isso eram incapazes de assimilar aquilo que não interessava. E nada que fosse diferente interessava. A maior inovação de suas vidas foi trocar a venda de tomates em Alvarães pela venda de tomates na rua Almirante Alexandrino. Quando era confrontado com alguma novidade o casal respondia com variações de Não vi e não gostei, Não sei e não quero saber, Não quero e não vou querer. Havia, também, a resposta que envolvia apenas uma careta, e os dizeres Eu, hein.

 

Escutar o próprio desejo implica correr riscos. Quantos de nós estamos dispostos a isso? Poderia aqui perguntar: quantos de nós estamos dispostos a pagar o preço? Todos pagamos o preço, estando ou não dispostos. Para mim, essa é grande contribuição de A vida invisível. Os pais das duas irmãs pagam com sua vida amputada pela condenação de uma das filhas; Antenor, marido de Eurídice, paga o preço ao ver a mulher com os olhos perdidos sentada em frente à estante. Eurídice paga o preço com sua “vida invisível” trancada no fundo escuro da gaveta. Guida e Eurídice tentam interpor, entre si mesmas e “a existência insustentável”, o desejo.[1] Não é o caso de afirmar se conseguiram ou não.

Tantos outros personagens pagam mensalmente suas promissórias com a esperança de que, aos poucos, não doa, e seguem nessa vida mais ou menos, vivendo a “vidinha que Deus lhe deu”. Já perderam, como aponta Lacan:

 

O sujeito não quer perder sua rainha, diríamos, à maneira dos maus jogadores de xadrez que imaginam que perder a rainha é perder a partida, quando ganhar no xadrez é chegar no que se chama a um final de partida. […] Ocasionalmente, é muito vantajoso sacrificar a rainha. É o que o sujeito não quer fazer de jeito nenhum.”[2]

As mudanças que o compromisso com o próprio desejo imporia a cada um deles seriam um preço alto demais a pagar. Seguiram, como o burocrata que segue executando suas funções com a promessa de uma vida satisfatória. No dia após dia, burocratiza-se a própria vida. Cumpre-se as etapas exigidas, a vida escolar, o desempenho acadêmico, a vida familiar, o escalonamento profissional e dorme-se o sono dos justos.

Justo, apertado, como a angústia que atravessa o peito toda a vez que, por um instante, lembram que um dia ousaram desejar. Transformam o desejo em objetos de consumo, que podem facilmente ser acoplados no esquema anterior e aceitos por aqueles que os rodeiam. Ah, a indústria do consumo sabe disso melhor do que ninguém e os supre mais e mais a cada vez. Ufa! Graças a ela, dormem o sono tranquilo quando chega o pacote da Amazon. Por poucos dias.

Será que, quando marcamos na história de cada um de nós a participação no centro acadêmico, o comparecimento às passeatas, às forma diversificadas de união conjugal, a escola alternativa que escolhemos para nossos filhos, o compromisso com as questões ecológicas com a compra de produtos orgânicos e de produção local, o uso de embalagem reutilizável, a preocupação com a desigualdade social, o apoio à celebridade eco do momento em nossas redes sociais, fazemos muito diferente? Podemos ir ticando as coisas no fim do dia, como carimbadores… Ops!

Burocratizamos o que parecia ser nosso desejo. Releitura que se encaixa nesse tempo em que vivemos, mas que pouco ou nada fala do compromisso que cada um de nós tem com nosso próprio desejo. A quais mudanças estamos dispostos para bancar nosso desejo?

Lembro aqui Raul Seixas, em Carimbador Maluco: “Não vai a lugar nenhum/Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado, rotulado se quiser voar!” Há que lembrar que apropriar-se do próprio desejo é sempre uma afronta à autoridade da lei.[3] Por corolário, apropriar-se de seu desejo é poder prescindir dessas burocracias, é apostar no nome próprio, no que se constrói com o compromisso ético consigo mesmo.

Escrevo essas linhas para a última edição de 2019 do P.S.I. Vamos entrar em recesso, voltamos em 15 de janeiro. O P.S.I., Para Sua Informação (boletim eletrônico semanal da Aller editora), começou esse ano, foi ideia do Omar Souza. Eu, ao invés do “Não ouvi, nem quero ouvir”, abracei o projeto. Hoje adoro sentar-me a escrever para o boletim e a ler os artigos que recebemos. Aqui estou, terminando 2019 e planejando 2020. Sem garantias, mas cheia de desejo.

* Fernanda Zacharewicz é psicanalista e editora da Aller.

[1] LACAN, J. (1958-1959) O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, aula de 13 de janeiro de 1859, p. 133.

[2] Ibid., aula de 4 de fevereiro de 1959, p. 227.

[3] Ibid., aula de 3 de dezembro de 1958, p. 88.