Por Glaucia Nagem*

Quando anunciaram a pandemia, trocamos ideias em alguns grupos de amigos psicanalistas sobre o que e como fazer com os atendimentos dos nossos pacientes. Seja por ter tido contato com pessoas com provável contágio de Covid-19, seja por se sentir resfriado ou apenas para se prevenir, eu e vários colegas suspendemos o atendimento presencial e abrimos a possibilidade de atender os pacientes por meios de comunicação como Skype e WhatsApp. O Conselho Regional de Psicologia, por sua vez, liberou para que esses atendimentos sejam feitos remotamente mesmo sem o cadastro e-psi. Mas algumas questões circulam entre pacientes e alguns analistas sobre o uso desses recursos.

Hoje temos muito mais acesso à internet e a meios de comunicação que não oneram nenhum dos lados. Digo isso pois, quando mudei para São Paulo e ainda fazia minha análise no Rio de Janeiro, por vezes minha analista me escutava pelo telefone. Ficava muito difícil, pois, além do pagamento das sessões, precisava arcar com a conta que ficava muito alta em tempos de interurbanos mais caros. Era uma espécie de SOS para aqueles momentos em que precisava de uma sessão e estava muito longe. Mas nunca chegamos a pensar em sessões regulares pelo telefone.

No começo dos anos 2000, um paciente morando em um local que não permitia o encaminhamento a algum colega passou a me ligar pelo Skype para o telefone do consultório e ter sessões. Foram seis meses de atendimento regulares até que ele pudesse voltar aos atendimentos presenciais, quando retornou para o Brasil. O que na época me surpreendeu foi constatar que o que temos na psicanálise é a possibilidade de escutar alguém que fala a qualquer distância. E que essa escuta e as marcações precisas tocam e movem o sujeito, mesmo que ele esteja do outro lado do oceano.

Mas, ainda assim, alguns ainda se perguntam sobre esse meio para a condução de uma análise. Uma primeira questão é sobre a presença do corpo. Ora, fora os casos mais graves, onde o olhar do analista é importante, os casos que acompanhamos que já estão no divã já não estão em contato apenas com a voz do analista durante a sessão? A presença não é esta, a voz? Isso que se descola do corpo e se aloja no corpo alheio?

Outra questão é o deslocamento até o consultório. Sim, isso é interessante, pois faz com que o paciente se desloque do lugar cotidiano para outro espaço e nele possa falar de um modo a propiciar um trabalho do inconsciente. Mas poderíamos pensar o espaço, a geografia, do mesmo modo que no início da psicanálise? Até que ponto os analistas se apegam a interpretações prêt-à-porter sobre como o analisando vem até os consultórios, como pagam as sessões e como vivem suas vidas? Quantas vezes temos notícias de interpretações que se apegam aos fenômenos observáveis e não atentam ao dizer?

Gosto muito de uma provocação de Soler no fim de seu livro Lacan, leitor de Joyce (Aller Editora), quando escreve que “os analistas devem estar à altura de seu tempo, isto é, que eles abandonem as velhas categorias não para ceder às modas para fins de mercado, mas simplesmente para poder responder como analistas aos casos que lhes são endereçados neste início de século” (SOLER, 2018, P. 222).

O que gosto nessa recomendação, além dessa retomada que Lacan já tinha dito do estar à altura de seu tempo, é o “não ceder às modas para fins de mercado”. Ora, decidir atender algum paciente por um meio de comunicação fora do consultório precisa seguir principalmente essa orientação. Isso porque, clinicamente, temos casos em que a presença é essencial.

Penso que precisamos estar atentos à nossa escuta para esse tipo de decisão. Mesmo sem o risco de contaminação, é possível abrir a possibilidade de escuta remota para alguns casos. Um sujeito que não tem como ser atendido onde mora; outro que, mesmo já sendo um paciente, não consegue se dirigir ao consultório por algum impedimento sério; e mesmo em uma situação de muita angústia poder abrir essa possibilidade no momento em que um sujeito não consegue sair de casa. Atentando para uma escuta clínica rigorosa e criteriosa.

Em tempo de quarentena não é diferente: abrir a possibilidade de escuta remota para aqueles que toparem esse meio sem perder o rigor clínico que temos quando recebemos o paciente em nossos consultórios. E, sobretudo, termos a sensibilidade de escutar, na recusa de alguns em serem atendidos remotamente, não apenas uma resistência ao tratamento, mas como algo novo que nem todos os pacientes suportam. Não é fácil ser atendido à distância. Para alguns, chega a ser insuportável, e nem o recurso do uso de imagem durante a chamada resolve.

Passar por esse momento com a criatividade que os primeiros analistas tiveram e reinventar a psicanálise a cada sessão, seja ela presencial ou remota — penso que, passado o isolamento, poderemos ressignificar essa prática e recolher seus efeitos com os pacientes que toparem esse tipo de atendimento. Em minha clínica, tem sido interessante a possibilidade de, mesmo à distância, poder suportar esse lugar de escuta neste momento de enfrentar algo tão novo para a nossa geração.

As questões que alguns analistas colocam para essa modalidade de atendimento podem ser colocadas na roda quando acabar o isolamento. Ao invés de se agarrar nas concepções fixas de setting e nas concepções de presença do corpo, vale considerar a voz e a escuta. Esse é o mínimo que podemos esperar de uma análise: na aposta de que as palavras, como diz Lacan em sua Conferência em Nice, é o que ainda move nossas entranhas.

* Glaucia Nagem é A.M.E. da IF-EPFCL, membro do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Processos Culturais e Subjetivação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pesquisadora do Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos (E-L@DIS/FFCLRP/USP).