Por Fernanda Zacharewicz[1]

A ameaça de um vírus mortal, transmitido pelo ar e sem tratamento definido, levou o mundo ao isolamento. Dentro de suas casas, cada sujeito teve de lidar com essa situação tão familiar e, ao mesmo tempo, tão estranha. Como conviver consigo mesmo, com seus cônjuges, filhos ou pais por um período contínuo e prolongado?

As relações intrafamiliares são parte importante da vida de cada um. Mas há que frisar: são parte da vida, não o todo. No contexto chamado normal, não passamos o dia todo em casa, saímos para o trabalho, para encontrar os amigos, para o lazer etc. Esses ambientes eventualmente se mesclam, mas, em grande parte do tempo, se mantêm separados, proporcionando certo equilíbrio nas relações.

O isolamento impossibilitou tais atividades, reduziu o espaço do sujeito à casa e suas relações aos que ali também estavam. Isso trouxe consequências. O sujeito foi confrontado com os efeitos de suas de suas escolhas mais primordiais, antes camufladas pelas atividades do dia a dia. Somaram-se agravantes como a iminente ameaça à saúde física, à segurança econômica… A incerteza pautava o futuro.

Psicanalistas de todo o mundo perceberam a necessidade de continuar oferecendo o tratamento analítico àqueles que já o faziam e a urgência de abrir novos espaços de escuta. Instituições e profissionais organizaram-se para atender a nova demanda. O atendimento online, antes uma exceção, tornou-se regra. A discussão que se impôs na comunidade de analistas não foi a possibilidade ou não do uso da tecnologia na terapia, mas sim as consequências da eclosão da pandemia num contexto social que já apresentava desafios específicos e a necessidade do retorno a conceitos básicos da teoria.

Por exemplo, nas sessões a distância, com o uso da câmera, a imagem e o olhar são fatores predominantes. Quando o vídeo é desligado, tem-se o predomínio da voz – aproximando-se do uso do divã. Esses aspectos pulsionais, embora já estivessem presentes no atendimento presencial, não se apresentam da mesma maneira no online.

O novo meio de atendimento supostamente chegaria a todos.

Supostamente, pois logo percebeu-se que, algumas vezes, o sigilo não poderia ser garantido. O analisante não tinha um lugar adequado no qual pudesse falar livremente, sem ser ouvido por outros. Ou: ainda que o atendimento de urgência fosse oferecido por muitos grupos de forma gratuita, o acesso à internet surgiu como obstáculo à escuta. Isso poderia ser entendido como resistência ao tratamento, mas a questão sobre os limites do atendimento online estava posta.

Assim, reflexões que já circulavam no meio analítico ganharam força com a pandemia. Auxiliada pelas tecnologias que se popularizaram durante a quarentena, a comunidade internacional analítica se pôs a debater esses assuntos e, aos poucos, algumas produções escritas começam a surgir. Um dos primeiros livros disponíveis nesse contexto é Psicanálise e Pandemia (CLIQUE PARA COMPRAR), que lançamos pela Aller Editora.

Debates sobre o isolamento social desdobraram-se na importância do encontro físico entre os sujeitos, no lugar do corpo na teoria analítica e na transferência que é estabelecida com o analista. As extremas desigualdades sociais, o descaso com a pesquisa científica e a rejeição da arte renovaram, na comunidade de analistas, a necessidade de reafirmar o compromisso ético inerente ao seu ofício.

Enfim, o analista hoje depara com o que sempre deparou: como escutar e qual o tratamento para o drama humano do sujeito de seu tempo?

 

Texto originalmente publicado em 16 de outubro de 2020, no site da Veja Saúde.

 

FOTO: PITÁGORAS. Sem título. Acrílica sobre imagem impressa, 2005. Acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Disponível em https://mam.org.br/acervo/2006-014-pitagoras/. Acessado em 20 de outubro de 2020, às 11h22.

 

[1] Psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e editora na Aller.