Por Ricardo T. Trinca*

Notamos como certas características da história coletiva e da história pessoal parecem muito semelhantes. Uma dessas semelhanças decorre do fato de que, tanto na história coletiva quanto na história pessoal, as narrativas tendem a ser produzidas pelos vencedores. Já os vencidos, ou aqueles que não puderam criar as suas narrativas, tendem ao esquecimento.

Do ponto de vista subjetivo, sabemos que inúmeras tendências ou aspectos do psiquismo podem ser relegados ao esquecimento, ao passo que outros, a processos mais radicais de apagamento. Do ponto de vista coletivo, essas formas de apagamento ocorrem também de modo variado, e entre elas, temos o desaparecimento – que é uma categoria mais radical do que a própria morte. No desaparecimento, aquilo que resta dificilmente se transforma em palavra.

Na morte, é sempre possível o luto e, com ele, a manutenção de uma experiência viva com aspectos daquele que se foi. Mas, quando os vencedores apagam o registro dos vencidos, de modo a desaparecer essa história, ela passa a ser carente de tudo, de palavras, imagens e emoções. Esses registros tão replenos de carências passam a não mais estabelecer laços com a realidade. Mas isso não significa que deixaram totalmente de existir.

Do ponto de vista subjetivo, quando ocorrem desaparecimentos desse tipo, estranhas marcas surgem psiquicamente como espécies de infiltrações alucinatórias. Elas são sem porquê, desprovidas de sentido e destituídas de ordem associativa; tratam-se de engramas que tendem a surgir no meio de experiências comuns do dia a dia[1]. São infiltrações em um aparelho psíquico fechado para certas experiências.

Mas coletivamente a história dos desaparecimentos é também perturbadora. Fragmentos de histórias tendem a aparecer novamente na comunidade, mas como retalhos, espalhados e isolados, negados e incoerentes. Um exemplo emocionante disso encontramos no filme Nostalgia da Luz, de Patrício Guzmán. Nele, parentes de desaparecidos políticos chilenos procuram na vastidão do deserto do Atacama restos de roupas, marcas de pneus, pedaços de ossos, qualquer coisa que ajude a dar uma pista para a reconstituição de uma história dos desaparecidos, seus familiares. É uma busca por uma história perdida. Um outro exemplo, de nosso país, é o do massacre do paralelo 11[2], ocorrido contra o povo indígena dos Cintas-Larga, no estado de Mato Grosso, na década de 60. Até nós chegaram relatos orais fragmentados e dispersos, desmentidos e confusos, por meio de compilações dos relatos dos próprios assassinos. Homens que, na vastidão longínqua da floresta, silenciaram permanentemente incontáveis homens, mulheres e crianças com tiros de metralhadora e fuzil. Seus corpos sem vida e seus relatos permanecem desaparecidos.

Assim, os desaparecimentos podem se constituir com tal radicalidade que aquilo que resta é tão somente um pequeno objeto, como um pedaço de pano velho, uma cuia quebrada ou uma palavra vazia, que não conserva nenhuma relação com aquilo que se foi. “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (da rosa de outrora só nos resta o nome, nada mais além do nome), frase que finaliza o célebre romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, diz exatamente isso. O que são palavras quando não fazem referência a algo psiquicamente existente? Esses são os vencidos, a “vae victis” (a desgraça dos vencidos).

As formas de apagamento da história são inumeráveis e geralmente produzidas por meio de traumas coletivos. Os apagamentos, quando são transmitidos através de gerações, ocorrem por meio de criptas, como mostrou-nos Mária Torok[3]; criptas que se conservam fechadas, constituídas de vergonhas familiares, segredos e dores que não puderam ser sentidas. Elas carregam para o futuro aquilo que não foi elaborado. Na história coletiva, podemos passar décadas ou centenas de anos para elaborar traumas coletivos produzidos por gerações anteriores, como fazemos hoje em dia ao revivermos cotidianamente o nosso passado recente e os traumas coletivos não elaborados oriundos da ditadura militar (1964-1985).

Por isso, no Brasil atual, precisamos ter a capacidade de chorar por nossos mortos e elaborar a perda de dezenas de milhares de pessoas. Enterramos diariamente mais de mil brasileiros vítimas do novo coronavírus. Trata-se da nossa história coletiva e também de histórias singulares, de dores singulares. Essas histórias precisam ser contadas e elaboradas psíquica e socialmente. Mas como fazer isso em um país que tende continuamente a apagar os registros dos mais vulneráveis? O risco do apagamento dessas histórias é que os mortos acordem nossas gerações futuras, pedindo para que lhes concedam palavras. Mas podemos lutar coletivamente para que esse ônus não seja mais um fardo passado adiante. Afinal, que história deixará de ser contada no futuro?

Por isso, vale rememorar um episódio ocorrido recentemente no Rio de Janeiro. No último dia 11 de junho, voluntários da ONG Rio de Paz fizeram um ato na praia de Copacabana. O ato pretendia lembrar dos mortos pelo coronavírus e protestar pela omissão do governo federal e em relação a sua política negacionista. Cruzes foram colocadas sobre a areia, junto a cem covas rasas, em frente ao calçadão. Conforme nos contaram os noticiários [4], um homem que andava pela avenida, ao ver as cruzes e as covas, desceu até a praia e começou a derrubá-las. Derrubou cerca de vinte delas. Dizia que o protesto da ONG estava causando pânico nas pessoas. Parecia bravo, incomodado e irritadiço. Dizia também tratar-se de um local público, por isso o ato não poderia ocorrer ali. Seu ato, ao derrubá-las, foi um des-atar[5] e tinha como propósito apagar esse registro. Sua justificativa parecia uma racionalização torpe, pois era a emoção que o movia, possivelmente com outras razões desconhecidas. Sua tentativa de acabar com o protesto consistia em retirar as cruzes de seus lugares, já que estavam fincadas no chão. Mas foi então que um homem começou a recolocá-las em seus lugares, fazendo uma reinscrição dessa história.

A reinscrição é um ato de reconstrução. Reconstruindo, inscreve-se algo novo, algo que não é original, embora mantenha uma relação de proximidade com aquilo que se foi. A reinscrição tem essa característica de oferecer novas possibilidades de sentido, ampliando seu alcance associativo. Foi essa ação que essa pessoa, pai de um filho de 25 anos morto pelo coronavírus, fez ao ver as cruzes des-atadas. Ao vê-las caídas no chão, foi até elas e colocou-as novamente em seus lugares. E disse que era necessário respeitar a dor das pessoas, oriunda de um luto pessoal e também coletivo.

A reinscrição foi um ato de resistência pacífica e de respeito ao luto e à história. Sua reinscrição mostrou como podemos reconstruir – e lutar – mesmo com forças que produzem o desaparecimento. Com seu ato, observamos como a história pessoal e coletiva se aproximam. Podemos ver nessa forma de resistência uma expressão análoga ao trabalho de análise, de reconstrução de histórias desaparecidas, e como esse trabalho tem um sentido ético tanto para a subjetividade quanto para a história coletiva. Por isso, ações como essa produzem laivos de esperança em nossa terra combalida.

*Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela USP, membro filiado à SBPSP, autor de A visitação do real nos fatos clínicos psicanalíticos (Edusp). E-mail para contato: ricardotrinca@hotmail.com.

[1] Roussilon, R. (2009) Le plaisir et la répétition. Maurepas: Dunod, 2001.

[2] https://olivre.com.br/mandante-de-massacre-dos-cinta-larga-era-irmao-de-ex-prefeito-de-cuiaba, acessado em 18 de junho de 2020, às 15h31.

[3] Derrida, J. “Foreword”. In: ABRAHAM, N. e TOROK, M. The Wolf Man’s Magic Word. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986, p. xxi-xvii.

[4] https://oglobo.globo.com/rio/voces-tem-que-respeitar-dor-das-pessoas-lamenta-pai-que-perdeu-filho-com-covid-19-ao-recolocar-cruzes-de-protesto-em-copacabana-24474620, acessado em 18 de junho de 2020, às 15h08.

[5] Atar é um verbo que vem do latim aptare e cujo significado é o de cingir, apertar ou prender. Guarda também o sentido de estreitar, ligar. Pode ser compreendido também como unir ou ligar (as partes ou um discurso). Des-atar é escrito com hífen com o propósito de destacar o prefixo “des” e, com isso, sua ação de negação, como desligar ou desunir.