Por Fernanda Zacharewicz*

Sou uma gaúcha paulista. Quando nasci, meus pais já haviam se mudado para São Paulo. Mais do que morar aqui, a cidade habita em mim. A linguagem paulistana, o cinza da metrópole e o clima incerto traçaram, como o cinzel no mármore, meu contorno. Sou afeita à Av. Paulista, minha vida foi atravessada por ela em momentos cruciais: a primeira infância, o primeiro casamento, o primeiro consultório, o nascimento das filhas… e esses dias voltei a ela.

Fui ao MASP visitar a exposição de Maria Martins, artista que elaborou uma série de peças cujo tema é o impossível do encontro entre dois sujeitos. Cada escultura é composta por duas figuras. Elas estão ali, juntas na mesma peça, compostas pelo mesmo bronze. Juntas e separadas, marcando veementemente a agressividade das obras e apontando a impossibilidade do encontro. Embora criadas a partir da mesma matéria, elas são marcadas pela profunda diferença, dando a cada sujeito representado a chance de não fundir-se até perder a si mesmo no encontro com seu semelhante.

Semanas antes – um pouquinho mais abaixo, no Bixiga – eu havia assistido ao espetáculo Agora, criação de Cassi Abranches para a São Paulo Companhia de Dança. No ritmo afro-brasileiro, misturado com rock e canto, os bailarinos dão corpo à urgência do tempo. O agora é a possibilidade que se impõe. A bailarina corre e dá um salto. Decidido, longo e alto. Ela vai ao encontro do par. Se ele não a pegasse, ela se estraçalharia no chão. Ela aposta e salta, ele a pega e, no tempo marcado pelas batidas da percussão, eles se separam logo depois.

Tanto no balé quanto no MASP, não fui sozinha, levei comigo minhas duas filhas adolescentes. No final dos dois eventos, comentávamos sobre as obras, sobre os passos, sobre os bailarinos – mas nunca sobre os afetos despertados em nós. Simplesmente não era pauta. Saindo do museu, fomos presenteadas com o entardecer típico da nossa cidade, o friozinho e a garoa fina. Caminhávamos pela Paulista, as pessoas iam e vinham, naquele movimento de pós-trabalho que reflete o cansaço do dia e o anseio pela casa.

Minhas filhas seguiam a um meio metro na minha frente. Eu queria saber como as peças afetaram-nas, mas, como mãe de adolescentes, aprendi a esperar que, sem proferi-la, a interrogação fosse respondida. Elas começaram então a discutir, irônica e calorosamente, sobre o uso indevido das roupas uma da outra. Eu olhava a cena, lembrava do impossível marcado nas obras de Maria Martins, do salto, do encontro com o par, que é, simultaneamente, o início do desencontro e o prenúncio de outro encontro mais, e sorria – o sorriso escondido pela máscara, que também me lembra das consequências da pandemia em nosso país, desencontrado com o outro e com a ciência. Eu sorria, escutando, na divertida discussão, a expressão de todo o afeto que as esculturas lhes causaram. Uma delas proclamou: “Eu vou trancar meu quarto”, apontando para a impossibilidade de compartilhar o mais íntimo de si. E isso ela sabia que deveria ser preservado.

Traçados os limites, pudemos nos reencontrar. Agora, seguras de que o mais íntimo de si fundirá com o outro, no salto que tudo resume e do qual advém o novo, colorimos a noite que caía com as bolas do sorvete compartilhado. Depois, de novo, nos separamos para que mais encontros sejam possíveis. E assim, sem eu haver planejado, a Paulista marcou outro momento crucial: percebi que minhas filhas sabem que são sujeitos únicos, que podem estar com o outro sem se perderem nele.

* Psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e editora da Aller.

IMAGEM: Escultura O impossível (1945), de Maria Martins.

Artigo originalmente publicado em 24 de outubro de 20221, no jornal O Estado de S. Paulo.