Por Laerte de Paula *

 

É ao mesmo tempo de um efeito e de um conjunto de saberes que se trata. Tal duplo uso já marca uma dificuldade epistemológica. Quanto ao efeito, parece com um brilho, uma força, uma potência. Também se parece com um acidente, um susto, um arrebatamento. Uma vez que estamos na linguagem, já somos passíveis de experimentar esse tipo de acontecimento: somos contagiáveis, sideráveis, encantáveis, equivocáveis (o que também quer dizer: angustiáveis). Nesse âmbito, trata-se de um efeito para quem pode ler e tentar dizer de diferenças, falhas, indecidíveis. Geralmente os leitores destes traços não escapam à tentação constitutiva de hierarquizar as diferenças e de preencher as lacunas de saber, identificando-se em algum lugar aí onde, entre uma coisa e outra coisa, uma hiância se crava. Em psicanálise, convencionou-se chamar esse tipo de leitor de neurótico. O neurótico lê – ainda que mal – e preenche o que não está dito para fazer frente ao enigma sobre o desejo do Outro e faz-se resposta (trôpega, rígida e obsoleta) diante dessa fissura.

Contudo, ao mesmo tempo em que esse efeito opera em quem pode ler, aí já há impasse, posto que tal fenômeno introduz algo que faz vacilar tal esforço de leitura. Não apenas faz vacilar, mas descentrar e subverter as fronteiras em jogo. No terreno em questão, subverte corpos, corpos feitos com palavras. Nos melhores casos, corpos sensíveis às palavras. No erótico, algo se dá a ler porque o texto já não é mais o mesmo.

Erótico também é o nome do conjunto de saberes (não coerente, não acabado, parcialmente aberto) que agencia as aproximações e recuos, bem como as narrativas em torno dos encontros e desencontros com as marcas referidas ao objeto: candidato-alvo do desejo. Inclua-se: o erótico é a sexualidade mediada pela trama fantasmática (incluindo-se aí igualmente suas fontes culturais e históricas) e os saberes articulados a partir de dentro desse enredo.

A pesquisa que sustento há mais ou menos seis anos busca inventariar diversas coordenadas para a formalização do campo do erótico. Conta com aportes de campos diversos: literatura, filosofia, psicanálise. Busca localizar os paradigmas, autores, paradoxos que possibilitem melhor articular o fenômeno e estudar sua amplitude. Alguns resultados já foram propostos e vão sendo publicados de forma fragmentada, traço próprio da experiência erótica. A pesquisa permanece em progresso através de grupos de estudo e de uma prática da escrita literária. Por limitação minha ou pela própria natureza da matéria, pareço distante de concluir a pesquisa. A quem lê este texto, considere um aviso: tal distância é, entre outras coisas, uma astúcia erótica.

Seis paradigmas provisórios (é que convém a um tratado erótico resistir à instituição de algo definitivo) podem ser anunciados a respeito do erótico:

  • O erótico faz oposição à identidade e às formas acabadas;
  • O erótico insinua uma experiência de excesso e violência;
  • O erótico é uma experiência marcada pelo signo da contingência;
  • O erótico institui uma triangulação;
  • O erótico prospera na renovação da língua;
  • O erótico aponta para a relação com o não saber (acho formidável a expressão de Lacan em Lituraterra: savoir en échec. Um saber em fracasso, distinto de um fracasso do saber).

Acréscimo: o erotismo avança nas intermitências onde o corpo se abre ao poder incandescente da palavra. Somente de vez em quando um corpo abre-se a esse atravessamento. Mas quando?

O erótico dissolve a identidade, não está do lado do reconhecimento, mas antes do irreconhecimento. Produz ato, na medida em que há subtração de saber e de sentido nesse acontecimento. Podemos recobrir e buscar recuperar o sentido esgarçado, ou atravessar a sideração e sair dela em um novo arranjo. É efeito para quem pode não apenas suportar, mas encontrar nessa travessia alguma satisfação. Satisfação esta indissociável da ideia de uma perda de narcisismo. “No erotismo, eu me perco”, diz Bataille em sua obra célebre O erotismo, de 1957. Para ele, o “que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas”. Em Bataille, o domínio do erotismo é essencialmente domínio da violência, experiência de despojamento e de vertiginoso acesso à própria descontinuidade, ao próprio inacabamento. Experiência da qual padecemos com diferentes modos de resposta. No erotismo, trata-se sempre de um consentimento ao extravio. Conviria ainda dizer que tal experiência implica uma possibilidade de investir em outro lugar, em outra cena, que não no desejo obstinado de reafirmar a própria identidade e os próprios domínios.

Sobre o antagonismo e a distinção entre o erótico e o egoísmo próprio ao Eu, Freud já havia assinalado algo ao alinhar o erótico ao “Eros dos filósofos e poetas, que mantém unido tudo o que vive”. Eros leva a sair de si. Desde tal perspectiva, produz desvio e afastamento do vórtice narcísico.

Ainda a esse respeito, encontro em Agonia do Eros, do sul-coreano Byung-Chul Han, um grifo interessante quanto ao sopro de abertura que tal fenômeno produz. Em Han, Eros é o que nos salva do reduto infernal do Eu, experiência soporífera do mesmo.

“Eros é expropriação”, diz Anne Carson, poeta canadense em seu brilhante ensaio Eros, the Bittersweet (traduzido como o doce-amargo, fazendo referência ao efeito ambíguo em questão). Na experiência erótica, o amante “sai de si, transcende seus próprios limites, para buscar aquilo que lhe falta, mas que não sabe exatamente o que é. Neste momento, atinge um ponto cego”. É muito similar ao que diz Octavio Paz, outro poeta, sobre o estado de fascinação produzido no erotismo: “a fascinação erótica [é] o que me tira de mim mesmo e me leva até você: o que me faz ir mais além de você”. Para além dos lugares, cuidemos de ouvir o fulgor próprio do erótico: ir além de.

A palavra está sempre atrasada em relação ao sopro erótico, embora ela mesma tenha o poder de invocar tal fenômeno.

Uma imagem, uma voz, uma palavra (sob sua dimensão significante), podem nos siderar a ponto de nos desviar de um caminho. Trata-se, sem dúvida, de experiência destitutiva que convida a uma abertura, mas que não se apresenta isenta de angústia, horror, ressentimento e ódio como respostas possíveis a tal irrupção. Retenhamos esta marca de virulência própria ao erótico…

Na medida em que o erotismo tem relação com isso que produz marca, que abre um desvio, outra noção acabou ganhando centralidade nesta pesquisa e com a qual o trabalho ganha em densidade: a ideia de sedução. Derivado do latim, se-ducere significa desviar (se = longe; ducere = liderar), mas tem também as acepções de dividir, afastar, partilhar. A ideia de desvio pode ser lida de algumas formas: desvio da verdade, de um caminho, de princípios íntimos. Seduzir é, primeiramente, “puxar de lado”, colocar o sujeito à parte, e tal efeito impõe uma queda: o seduzido cai de um determinado regime de conhecimento (para o qual um dado saber parece bastar) para um de sideração (onde o saber falha). É o ponto cego de que Carson falou há pouco. Na queda, o erotismo pode brilhar.

Junto à conotação de desvio, é necessário recuperar a dignidade da dimensão de promessa que a sedução veicula. Atentemos: promessa, ponto. Sem complemento, sem objeto. Em sua essência, a sedução não promete nada além de relançar-se em um movimento de aspiração. Alguns autores (como Derrida e Baudrillard, por exemplo) não cessaram de apontar para a dimensão de segredo, de ilusão, de truque que a sedução institui, convidando a um jogo que não possui nenhum compromisso com a coerência, com a veracidade ou com as consequências. Há uma dimensão de aposta, de risco e de jogo que o erótico e a sedução põem em movimento. Joga com o engano, com as aparências e com a inversão de lugares, com a distância entre o desejo e sua insinuada consumação. Está mais do lado da aspiração que da satisfação. Avesso à lógica do consumo, das garantias, da segurança.

Uma das questões que mobiliza esta pesquisa talvez seja a mesma que mobiliza uma boa dimensão da psicanálise: como algo faz marca? De que uma marca depende para acontecer? De quais ou quantos tempos uma marca é feita? Que tipo de marca a irrupção erótica pode deixar no corpo?

Pois o erótico traz essa ambiguidade fascinante: produz nova marca ao mesmo tempo em que dissolve algo. Não sabemos o que é.

Lou Andreas-Salomé, em ensaio primoroso sobre o tema, destacou justamente a faceta irrepetível do fenômeno erótico: “A exigência da escolha, do objeto erótico e do momento do amor é paga pelo esgotamento que em breve provoca tudo aquilo que mais violentamente se desejou, e por isso pelo desejo do que nunca se repete, a força ainda intacta da excitação: a mudança”.

Além disso, o fenômeno erótico frequentemente é atrelado aos limites inerentes da linguagem em dar conta dessa experiência. São diversos os autores que apontam para a dimensão de falha da linguagem. Lou Salomé assinala na mesma obra: “o excesso em que se satisfaz esta vibração se harmoniza de certo modo com uma tecla tocada pela primeira vez, tomando o partido de todas as aspirações a um estado obscuro e inexprimível”.

Junto a esses atributos, grifo outra ideia de Anne Carson, quando enfatiza a dimensão da triangulação, imprescindível para que o erotismo possa comparecer e inflamar o fogo do desejo. Tal ativação requer os seguintes componentes estruturais: amante, objeto amado e isso que se interpõe entre ambos, precisamente a diferença entre eles. Carson aponta para o fato de que, longe de enganchar uma díade sujeito+objeto do desejo, Eros faz justamente obstáculo a essa colagem, evidenciando algum traço de diferença para operar uma triangulação. Ademais, o que é reivindicado através de Eros implica necessariamente uma aspiração ao desconhecido. Trata-se de assegurar que não se chegue tão perto do desejo a ponto dele se esvair; trata-se garantir que algo de desconhecido permaneça desconhecido.

O erotismo depende precisamente de que algo permaneça não visto, não sabido. Podemos também dizer: depende da operação do recalque. (Ainda que sujeita a discordâncias, vem daí a distinção que diversos autores fazem entre pornografia e erotismo: onde a pornografia supostamente pretende mostrar tudo, o erotismo se serviria daquilo que se furta ao olhar).

Daí a importância de destacar a noção de distância que o erotismo implica. A mesma distância que pode ser insuportável a alguns, a outros pode ser a única via possível para a sustentação erótica. Se me ponho muito distante ou muito colado ao objeto-candidato para meu desejo, a articulação com o desejo pode não produzir a faísca necessária, o que também amplia as múltiplas possibilidades de arranjos eróticos: o erotismo de uns é o insuportável de outros. Nossa cena político-cultural em pleno 2020 é testemunha da atualidade desse impasse, e um comentário mais cuidadoso em torno das implicações sociais derivadas do fenômeno erótico mereceria discussão à parte.

Freud destacou outra dessas propriedades do erótico. Em O Mal-Estar na Civilização, diz que o que chamamos de felicidade consiste, na maior parte das vezes, de satisfações repentinas e episódicas: “somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas”. É bastante próximo do que Roland Barthes formalizou através do efeito erótico possível de ser passado via escrita: ele não está em nenhum lugar específico, mas na fricção entre lugares que o escritor procura convocar. “Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada”. Equivale a dizer que o erotismo tem esse caráter atópico, não possui lugar próprio. Ele se realiza na precisa tensão entre lugares.

É possível servir-se, encontrar algum sabor, entusiasmo, prazer, em um modo de relação com o jogo em torno do objeto fantasmático que seja diferente da vitória narcísica? É possível gozar do perder, do perder-se, do enganar-se, do tropeço? Lacan marcou sua aposta: les non-dupes errent.

Como já frisado, não é que uma identidade não sirva de nada, ou que possamos prescindir de toda e qualquer referência. Não é um elogio ao que seria uma absoluta fluidez. Não haveria nem comunidade humana nem erotismo possível. Mas é o caso de dizer que a identidade falha, ela é justamente produto e resposta à falha. O erotismo flui melhor onde a relação com a linguagem não perde de vista essa marca.

E o amor? A pergunta se insinua de diversos lados. Por um lado, é absolutamente distinto do erótico, embora sua matéria venha justamente daí. O amor é uma questão profundamente ambígua endereçada ao erotismo. Como amar aquilo que não nos reflete, que não se estabiliza, que nos desvia de nós e que age sem cuidado? Deixo o amor como suave insinuação para questões inacabadas.

* Psicanalista, acompanhante terapêutico, mestre em psicologia clínica pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. Coordenador do setor de triagens e assistente da coordenação do setor clínico da Rede de Atendimento do Centro de Estudos Psicanalíticos. Participa de atividades de transmissão da psicanálise e coordena projetos de pesquisa relacionadas ao tema do erotismo, da sedução e da escrita. É autor de O Vento, A Chama, publicado pela Editora 106.

 

Referências bibliográficas

Andreas-Salomé, L. (1991). O erotismo seguido de reflexões sobre o problema do amor. São Paulo: Princípio.

Barthes, R. (2006) O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva.

Bataille, G. (2013) O erotismo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica.

Carson, A. (2013) Eros: el dulce-amargo. Buenos Aires: Fiordo Editorial.

Didier-Weill, A. (2014) Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contracapa.

Freud, S. (2010). História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras.

Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras.

Han, B-C. (2017). Agonia do Eros. Petrópolis: Editora Vozes.

Lacan, J. (2003). Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Paz, O. (1999). Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim.