Por Rafael Kalaf Cossi*

Dória é conhecido por sua “fluidez ideológica”. Frequente e despudoradamente muda de lado, rompe e se filia a homens, valores e discursos que se dizia contra – transita e se acomoda como lhe convém, sem escrúpulos e desconsiderando nossa memória. Será que ele acredita que se muda de gênero ou de orientação sexual tão fácil – e tão levianamente – como ele de posição enquanto político?

Há alguns dias, Dória ordenou que fossem recolhidas das escolas estaduais apostilas destinadas a alunos de oitavo ano que, segundo ele, faziam apologia à “ideologia de gênero”. Neste material, consta um texto que aborda a diversidade sexual; explana didática e devidamente sobre as definições de sexo biológico, gênero (cisgênero e transgênero) e orientação sexual (hetero, homo, bissexual) no contexto das identidades. Também esclarece que a sexualidade humana é plural; que não há somente uma forma de nos relacionarmos; que a apreciação de que existiria a manifestação sexual  “correta” ou “normal”, qualquer que seja, é uma invenção, uma construção histórica e não um dado natural fixo, predeterminado e universal.

Eleger esta ou aquela manifestação como a ideal é uma manobra de poder – na contemporaneidade, a heterossexualidade foi proclamada como tal, à medida que o modelo biologicista da reprodução das espécies ganhava primazia nas ciências. O problema é que para se constituir o “correto”, necessariamente se funda o “inaceitável”, o “abominável” que causa aversão e que deve ser posto à margem por não corresponder à norma (ao passo que, paradoxalmente, a viabiliza). Aqui são localizados os seres abjetos, aqueles não formatados heteronormativamentequase como inumanos, seus corpos “impróprios” não à toa estão constantemente vulneráveis à violência. Eles trazem à tona o horroroso inumano que nos habita, ameaçam as estruturas de poder, além de cutucar nossos conteúdos sexuais inadmissíveis e que precisariam se manter recalcados.

O texto sublinha que a diferença faz parte da nossa experiência em sentido amplo –  não só no campo da sexualidade, mas também no religioso e étnico – e em nenhum momento incita esta ou aquela prática sexual, esta ou aquela expressão ou performance; não instiga a erotização ou a sexualização precoce dos alunos; não há ensinamentos sobre como são ou como ocorrem as relações sexuais, muito menos entre sujeitos do mesmo sexo. Sobretudo, não é um manual de quaisquer condutas sexuais. Por fim, não há valorização ou desvalorização desta ou daquela modalidade, prática, postura, fantasia, desejo, prazer ou qualquer  coisa que o valha ligados ao sexo – não se trata de um texto panfletário que estimula a imprudência ou a lascívia, de nenhuma ordem. O que se tem é informação, nada mais – informação honesta, precisa e o destaque para a legitimação das nossas diferentes possibilidades. Resta saber por que informar sobre isto permanece tão ameaçador. É como se a informação fosse causar uma deturpação moral e nossos alunos fossem consequentemente desviados do “bom caminho heterossexual”, encarado como o único válido, decente e respeitado. Só que é ao conhecimento que a informação nos leva; nos desencaminha da ignorância, não desta ou daquela orientação sexual – ninguém muda de gênero ou assume outra prática sexual pela aquisição de saber; nenhum aluno de oitava série tem sua fantasia heterossexual deturpada por se dar conta de que nossa sexualidade é polimorfa. Dória erra duplamente: faz equivaler o duvidoso termo “ideologia de gênero” à notícia de que a diversidade faz parte do sexual; e que, além do mais,  esta informação nos contaminaria, nos tornaria impuros, condenados desde então a uma irredimível vida de pecados não-heterossexuais.

Não existe “ideologia de gênero”! Tal expressão não faz parte dos Estudos de gênero – “gênero” sim é uma categoria acadêmica; já “ideologia de gênero” é uma expressão cunhada por movimentos conservadores que, a partir de explicações falsas e sem fundamento, tentam nos inculcar que abordar o tema gênero em nossas escolas levaria à perversidade ou à degenerescência. No final das contas, o que se detecta aqui é uma incompreensão colossal sobre o que o gênero é, a quê ele veio e para quê serve! Falta de informação…

Gênero não é uma ideologia. Grosso modo, trata-se de uma categoria que surgiu para pôr em evidência o caráter político que participa da edificação das identidade sexuais; para revelar que os papéis e significados sexuais nos são imputados pela cultura, discursivamente criados e não instituídos pelo aparelho biológico; para favorecer a legitimação dos gêneros ininteligíveis, aqueles que não se adequam ao estereótipo dos gêneros  hegemônicos, masculino e feminino; para combater a discriminação, o ódio e a intolerância. A lista é extensa e poderíamos continuar discorrendo longamente sobre o tema – o que não podemos deixar de lembrar é que, inicialmente, nos anos 70, gênero foi adotado como forma de escancarar as relações de poder travadas entre homens e mulheres – sim, entre homens e mulheres, a dupla heterossexual! Ou seja, gênero nasce para denunciar, procurar compreender e tentar transformar a relação de dominação, subordinação e hierarquia a que as mulheres heterossexuais estavam submetidas. Para lhes libertar de uma domesticidade encarceradora, permitindo acessar seriamente os meios de produção; para lhes dar voz e uma representação social que partisse delas próprias. Gênero veio, num primeiro momento, em benefício da mulher heterossexual!

Mais uma vez, os estudos de gênero nunca pretenderam modificar a sexualidade do outros – até porque isso não é possível. O conhecimento é desalienante e temos de persegui-lo: as escolas e as universidades são os espaços consagrados de sua transmissão. As produções acadêmicas que se ocupam de gênero precisam se tornar mais visíveis – mas isto não se dá trocando muros de concreto por muros de vidro. Não é deste tipo de visibilidade que precisamos. Dória teria que transitar em outro âmbito.

  • Rafael Kalaf Cossi possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2000), títulos de especialista pelo curso “Teorias, técnicas e estratégias especiais em psicanálise”, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2002), de mestre (2010) e doutor (2017) pelo Departamento de Psicologia Clínica da USP. É membro do grupo de pesquisa do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP). É autor do livro Faces do sexual: fronteiras entre gênero e inconsciente, publicado pela Aller Editora.