Por Enzo C. Pizzimenti*

Reservo alguns minutos para refletir sobre os manicômios que temos em cada um de nós — essas instituições totais, plenas de saber, verdade e certeza. Instituições de violência, em última instância. Cumpre, então, convocar meus amigos e colegas a refletir sobre a violência que operam contra o outro. Qualquer outro. Do amigo ao porteiro para quem você sequer sorri ou acena pela manhã.

Não se trata aqui de moralizar as relações. Trata-se, sim, de questionar a origem de certos comportamentos. De novo, não necessariamente para que estes sejam transformados em novos e “reformados” comportamentos. Este caminho teria como fim uma normativa mais à esquerda, no máximo. Imperativos como o silêncio ou a fala, assim como o trancafiamento e a máxima da inclusão pela inclusão, são caminhos com pouco ou nenhum espaço para o sujeito, ainda que este insista e se faça presente, apesar das políticas, instituições e profissionais.

Basaglia, protagonista maior da psiquiatria democrática italiana, importado e tolhido de sua potência disruptiva em terras brasileiras, dizia que no momento em que os autores da luta Antimanicomial se sentassem atrás de suas mesas, supondo terem esgotado suas possibilidades, seria o momento mesmo em que a luta Antimanicomial fracassaria. Em suas palavras:

“Seja como for, à medida que fomos vencendo, passo a passo, as diversas fases de nosso distúrbio institucional, foi-se tornando mais clara a necessidade de um contínuo rompimento das linhas de ação que, exatamente por estarem inseridas no sistema, deviam ser, uma a uma, negadas e destruídas”1.

Trata-se, por fim, da produção de mais um (dentre tantos possíveis) saber-fazer – algo singular, produto deste caminhar-pesquisar –, que é a vida como um todo.

Trata-se da busca por algo que venha a auxiliar no sustento deste ponto nevrálgico da história da loucura e do que fazemos desta. A loucura de cada um.

Da psicanálise, não se espera o poder de derrubar os muros de hospitais psiquiátricos, tampouco redigir leis livres de questionamentos e furos. O que se espera, sim, é a produção de reviramentos de todo discurso que intente prescindir da palavra daquele que sofre.

No último sábado recebi uma ligação muito dura. Uma colega psicanalista, funcionária de um hospital na Bahia, estava muito angustiada. Muito mesmo. Contava de uma situação violenta com uma paciente que fora amarrada a uma maca pelos técnicos de enfermagem e médicos.

“Enzo, a gente questiona, questiona, questiona e no fim das contas seguimos vendo o mesmo acontecer. Eu me senti fazendo parte daquilo tudo. De toda a violência.”

Conversei um pouco com ela e descobrimos, juntos, que ela foi a única que perguntou o nome da paciente, de onde ela vinha, do que ela gostava. Dias depois a encontrou em um outro equipamento de saúde da região e escutou dela algo como “Você tem que sair de lá, você merece um trabalho melhor.”

Arrisco, aqui, uma interpretação de que, de fato, dar à palavra tamanha importância não é trabalho para qualquer um. Não é trabalho para qualquer instituição e, em última instância, não é uma ética que se possa esperar como derivação lógica de uma lei. Até mesmo a nº 10.216 – lei da Reforma Psiquiátrica.

É preciso, mais do que nunca, exaltar e afirmar o processo, a luta. Os caminhos, mais que as chegadas. É preciso comemorar a lei da Reforma Psiquiátrica em sua dimensão viva. Pulsante. Para que não façamos desta mais um signo de uma militância que, por vezes, parece preconizar um indivíduo sem sujeito – fazendo do impossível, fértil em invenções, lugar comum em sua suposta individualidade. Uma militância empobrecida por certezas absolutas e pouco porosas.

* Psicanalista, doutorando junto ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da Universidade São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica (IPUSP).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – BASAGLIA, F. (1985) A Instituição da Violência. In: BASAGLIA, F. (Org.). A Instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. (Trad: Heloisa Jahn.) Rio de Janeiro: Edições Graal, p. 112.