Edna Chernicharo*

Esse texto é resultante dos trabalhos escritos para o III Encontro do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Clínica Laços por seus membros, em novembro de 2019, na cidade do Rio de Janeiro. Nascidos no ano de 2001, a Clínica e o Centro comemoram, pois, dezoito anos de muito trabalho teórico, estudos e, principalmente, de construção de um saber que se transladou dos muitos encontros e discussões à efetivação concreta de um espaço físico, que hoje os abriga e onde se realizam atendimentos psicanalíticos a preços populares.

Em 2017, a proposta da Clínica Laços ganhou novos rumos. Um desejo antigo se fez presente: abrir um espaço de atendimento clínico no qual todos os psicanalistas da Clínica Laços pudessem atender. Há que lembrar que a intenção não era constituir uma clínica de caridade – clínica da exclusão ou inclusão –, nem, tampouco, reproduzir e perpetuar o abismo social existente, quando o sujeito é aprisionado em faixas de renda ou categorias econômicas.

Elizabeth Ann Danto, no livro As clínicas públicas de Freud – psicanálise e justiça social (2019), apresenta o discurso proferido por Freud, em 1918, no V Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapeste. Tal discurso foi publicado no Brasil como “Caminhos da Psicoterapia Psicanalítica” (1909) e, ali, Freud defende as seguintes ideias: que o tratamento psicanalítico deveria ser assegurado a todos os cidadãos, fossem eles ricos ou pobres, posto que as neuroses afetam os indivíduos tanto quanto uma doença física; que o Estado teria a obrigação de garantir este tratamento àqueles que não pudessem pagar por ele; e que, enquanto o Estado não assumisse esse compromisso com as camadas populares, clínicas deveriam ser construídas para formar mais psicanalistas e oferecer atendimentos gratuitos.

Jorge Broide (2019), prefaciando o referido livro, afirma que o impacto gerado pelo discurso de Freud conduziu os psicanalistas a se envolverem intensamente na criação de clínicas públicas vinculadas a institutos de formação em psicanálise, bem como a participarem ativamente da construção de políticas públicas. Segundo ele, houve um grande movimento de discussão e invenção de dispositivos capazes de fazer operar a psicanálise em distintos campos sociais.

Cabe salientar que, de acordo com Elizabeth Ann Danto, esse impulso de tornar a psicanálise amplamente acessível não estava relacionado à filantropia, mas, sim, ao entendimento de que os cuidados de saúde mental deveriam ser assegurados enquanto direito. Interessa-nos, também, enfatizar a seguinte afirmação da autora: “A prática da psicanálise é um compromisso no discurso político, conscientemente ou não”.

Com o objetivo semelhante de garantir a efetivação da psicanálise, Lacan escreve “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Nesse texto, Lacan cria operadores na formação do analista que coexistem com a própria psicanálise e seu emprego na sociedade: “Psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo” (p. 261).

A implicação do analista com as especificidades da psicanálise envolve o desejo – o analista opera a partir de um lugar que não é um espaço geográfico, mas um lugar enquanto uma função, um desejo, um discurso. Tal concepção lacaniana vai na contramão da ideia de alguns analistas que, a partir do texto “Sobre o início do tratamento” (Freud, 1913), transformaram as condições da análise em regras para garantir a execução da prática, a serem cumpridas por meio de um contrato com o analisante, com rigor quanto ao número de sessões semanais, o tempo exato de cada sessão e o uso obrigatório do divã.

Chamadas de setting analítico, essas normas deveriam ser rigorosamente seguidas para que se pudessem garantir a legitimidade e o bom funcionamento do processo analítico. Nesse caso, o que definiria o dispositivo freudiano não seria a única regra da psicanálise (a associação livre), mas, entre outras coisas, o mobiliário, o horário, o tempo fixo das sessões.

Nesse contexto, Lacan retira a psicanálise do âmbito das regras para situá-la na esfera da ética. Ele encerra a padronização; o setting analítico é rompido para que o analista possa manejar a sessão de acordo com a única regra imposta ao analisante: a associação livre. A partir daí, introduz um modo novo de conceber o lugar para a prática de uma psicanálise em que o analista estabelece um modo peculiar, definido pelo discurso analítico, de relacionar-se com o analisante, no momento da clínica.

Ao romper com regras de aprisionamento da psicanálise ao cenário de consultório, Lacan, tal qual Freud, autoriza que ela seja oferecida em outros ambientes.

Seria possível uma clínica extra consultório? É certo que existem muitas experiências e que a psicanálise está para além das paredes de um consultório, mas, paralelamente, é preciso tratar do quanto o profissional, ocupando o lugar do analista, poderia sustentar dessa prática e/ou sustentar-se dela. Desse modo, a Clínica Laços não recua frente as diferentes demandas que a contemporaneidade apresenta e para as quais um saber a priori é fundamental quando é convocada a atender uma demanda de urgência traumática em instituições privadas, como no caso de um Centro de Treinamentos de um time de futebol.

A história recente do movimento psicanalítico no Brasil registra, a partir da última década do século XX, o interesse crescente dos psicanalistas pelo trabalho nas instituições de assistência à saúde e de prestação de serviço a públicos específicos, com a observância de que o contrário também se dá, numa via de mão dupla. Ainda assim, fica evidente que a crescente difusão da psicanálise acontece pelo viés da formação acadêmica dos analistas, acompanhada da imprescindível formalização de sua práxis.

O exemplo aqui trazido é o de uma experiência com início em fevereiro de 2019, após uma ligação telefônica, em que o pedido foi: “A Clínica Laços pode realizar atendimento junto aos nossos colaboradores?”. A ligação partira de uma Instituição Esportiva (Clube de Futebol), em que havia acontecido uma tragédia recente.

Recebido o pedido, foi preciso, de início, pensar quais intervenções a escuta psicanalítica poderia ofertar pós-desastre, considerando, de antemão, que o trauma não é o fato em si, mas a forma como um evento disruptivo incide sobre o aparelho psíquico dos sujeitos e como é articulado na vivência singular. Não há garantias; é uma construção que se dá a cada vez, no “um a um”, como: acolher a demanda da instituição, ofertar o trabalho, entender os efeitos a serem produzidos em cada um; enfim, um grande desafio.

Afinal, o que o analista tem a oferecer? Um trabalho singular, uma escuta típica. Uma escuta do registro inconsciente do paciente. Sustentar essa oferta é o primeiro ato do analista, lembrando que o ato é o que inaugura a psicanálise, quando Freud abriu o inconsciente à sua formalização. A transferência, como diz Lacan, é por onde se começa uma psicanálise, e o seu pivô é o sujeito suposto saber. Assim, o surgimento do sujeito sob transferência é o que dá o sinal de entrada em análise, e esse sujeito é vinculado ao saber.

É importante sublinhar que, embora o trabalho tenha acontecido pelo pedido da instituição (Clube de Futebol) à Clínica Laços, cada funcionário do Clube, corporativo ou atleta, envolvido de alguma forma na tragédia, poderia aderir ou não.

O ineditismo deste trabalho consiste justamente no seguinte ponto: com a oferta, foi criada uma demanda. Melhor explicando: a inserção da Clínica Laços nesse espaço se deu a partir de entrevistas realizadas junto aos funcionários do Clube, nas quais, por meio de um questionário simples, eles respondiam de que forma estavam vivenciando a tragédia, se tinham contato com as pessoas que morreram, qual a repercussão da tragédia no próprio cotidiano e o que achavam de ter um espaço para falar. A partir das entrevistas, foi instaurada a demanda por atendimento – fato digno de registro pelo mérito, por parte dos dirigentes, do reconhecimento da necessidade de um suporte que permita aos envolvidos (diretos e indiretos) terem acesso a um acompanhamento especializado por psicanalistas nesse momento de luto coletivo tão doloroso.

Somente aderiram aqueles que desejaram, apresentavam alguma queixa ou tipo de sofrimento. Em outras palavras, só se busca por atendimento quando há uma aposta de saber na figura do analista. É a partir daí que ele opera. Se, diante da oferta, apresentou-se a demanda e, com ela, novas foram deflagradas, uma questão, em especial, se impôs: como a psicanálise, que já se ocupa com os restos do discurso da ciência, pode, no cenário “Clube de Futebol”, trabalhar com os restos, as brechas provocadas pelo discurso da “Alta Performance”, cujo o lema é “vencer, vencer, vencer”? Haveria espaço para que os sujeitos conseguissem saber que a dor da perda não é sinônimo de fraqueza?

Vale lembrar que este trabalho é pautado na ética, tendo em vista o recolhimento dos efeitos do sujeito com o seu desejo. Guerra explica: “Quando o sofrimento individual aparece sob o manto do perigo a ser contido (luto), da patologização da pobreza a ser curada, da criminalização a ser punida, da violência a ser eliminada, nossa intervenção não pode se deter apenas nos sujeitos – ainda que não possa prescindir de escutar o que seus corpos escrevem e testemunham quanto a seu tempo histórico e à vida pública” (2017, p. 17, acréscimo nosso).

Ao abrir espaço para que o sujeito chegue à clínica, a aposta é a de que, assim como Freud, haja uma possibilidade de futur Psicanalista e doutora em Psicologia Social.o para a psicanálise e, mais do que isso, “uma inserção orgânica no campo social era fundamental para a sobrevivência da psicanálise” (Danto, 2019, p. XIV).

* Psicanalista e doutora em Psicologia Social.