Por Ana Lucia Gondim Bastos*

A tarefa da juventude de se reinscrever no mundo que está aí, encontrar/construir espaços de expressão de subjetividade, é árdua e de extrema importância para a manutenção das fagulhas de esperança em novos futuros possíveis para toda a humanidade.

Atualmente, as agruras da juventude são particularmente intensas: ela vive um momento no qual, como denuncia Ailton Krenak, “estamos desafiados por uma espécie de erosão da vida”[1], atravessados pelas constantes atualizações das tecnologias que consumimos e que nos consomem, pela violência do Estado sobre o cidadão, pela opressão a toda e qualquer movimentação que não o restrinja à condição de consumidor, pelo perigo dos encontros e dos abraços imposto por uma pandemia, e pela limitação da possibilidade de ocupação dos espaços públicos, seja para as manifestações de luta, seja para as celebrações das conquistas coletivas.

Sem dúvida, é um momento no qual a tristeza, a indignação, a raiva contra as injustiças, mais do que nunca explicitadas, e a sensação de estarmos sempre assustados à espera da próxima tragédia constrangem movimentos, calam vozes e ceifam vidas. Mas, sob risco de repetições mortíferas, ouvindo novamente as denúncias de Krenak, que fala da vida como dança cósmica da qual precisamos cuidar para que não se reduza a uma coreografia ridícula e utilitária, temos como obrigação dar as boas-vindas à juventude e, como em música de Caetano, contar-lhes (ou os deixando nos contar) que a vida é gostosa, que se tem a morte, o amor, a poesia, a prosa, o mote e a glosa. Devemos contar-lhes também que a história é viva e pulsante neles, e que a resistência pode acontecer na alegria, que é potência viva, pois, como já nos ensinou Belchior, “a felicidade é uma arma quente”[2]!

Nas duas primeiras décadas deste século, tivemos no Brasil produções cinematográficas que trazem jovens como protagonistas e que podem ser boas inspirações para tal missão. Temos documentários como Pro dia nascer feliz (2005), de João Jardim, no qual se discute os ambientes escolares de jovens do Brasil afora, e Espero tua (re)volta (2019), de Eliza Capai, narrado por três jovens que participaram do movimento estudantil que ganhou força a partir das ocupações das escolas estaduais de São Paulo em 2015. Documentários que logo nos remetem à advertência da escritora nigeriana Chimamanda Adichie quanto ao Perigo de uma história única[3], por explicitarem a diversidade da qual é formada uma realidade, dando espaço para múltiplas vozes e experiências, as quais, por sua vez, darão margem a construções e entendimentos diversos.

Fortes personagens jovens da ficção também fazem coro com esses da vida real trazidos nos documentários. Analisemos o Buscapé (Alexandre Rodrigues), do longa Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles. No título do filme, o nome da favela carioca, na qual cresceu Buscapé, parece denunciar a falta de recursos e cuidados com aquela parcela da população que vive entregue “à própria sorte”, ou ainda, contando com o amparo divino para sobreviver. De especial sensibilidade, Buscapé enxerga na oportunidade de ingresso na profissão de fotógrafo uma forma de produzir leituras e inserções sociais que favorecem uma narrativa diferente das de tantos jovens que, como ele, cresceram imersos num universo de violência e precariedade.

Já Mano (Francisco Miguez), de As melhores coisas do mundo (2010), dirigido por Lais Bondansky, é um rapaz da elite intelectual paulistana que termina o longa-metragem concluindo que “Não é impossível ser feliz quando a gente cresce, só é mais complicado”. Mas, antes dessa conclusão, Mano descobre, nos protegidos ambientes doméstico e escolar, a política, o sexo, a percepção crítica das idealizações e dos preconceitos, o aspecto vulnerável e frágil dos pais, dos professores e do irmão mais velho, o medo do não pertencimento e a importância de enfrentá-lo, assim como todas as complicações que vêm depois que a gente cresce, entendendo ainda a importância de expressar sentimentos e lhes dar contorno (através das artes, por exemplo).

O longa Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro, trata desses encontros e desencontros, só que desta vez na vida Leo (Guilherme Lobo), um jovem deficiente visual pertencente à classe média carioca.  Leo, tomado por uma profusão de sentimentos que entram em cena nessa fase da vida – como ciúmes, insegurança, rivalidade, tristeza, dúvida, decepção -, vive o entusiasmo pelas novas descobertas e a ansiedade pelo porvir, acompanhada pela coragem para enfrentar desafios, colocando em xeque a aparente inevitabilidade da dependência e superproteção familiares. Tudo junto e misturado no corpo, que também está em transformação.

Questões relativas à orientação sexual e identificações de gênero não poderiam ficar de fora dos roteiros sobre nossa juventude e, de fato, não ficam. Em todos eles, os protagonistas experimentam no corpo os atravessamentos dos destinos das pulsões e suas vicissitudes e vão se haver com suas escolhas e apropriações do desejo. Com Pierre (Naomi Nero), de Mãe só há uma (2016), dirigido por Anna Muylaert, tais questões ganham uma complexidade ainda maior quando, nesse caminho de experimentações da sexualidade, o personagem descobre que foi vítima de sequestro na maternidade e passa a viver com a família biológica, para a qual inclusive seu nome é outro.

São filmes que falam, como na canção de Caetano, de como “às vezes é solitário viver”[4], mas falam também da importância de nos percebermos parte da História, pessoas de nosso tempo, pertencentes a um espaço de conquistas (e perdas) coletivas. Falam do que Hannah Arendt chamou de a “paradoxal pluralidade de seres singulares”[5] que a humanidade comporta, assim como da indissociabilidade entre a expressão subjetiva e seu contexto sociocultural.

E é nesse paradoxo que cada jovem se reinscreve no mundo, e cada uma dessas reinscrições, sem dúvida, abre portas e janelas para vislumbrarmos outros mundos possíveis. E é por isso que precisamos garantir que possam voar e possam ter para onde voltar com segurança.  Garantir que possam continuar com voz e com voto para exercitarem suas cidadanias e para que possam ter corpos alegres e livres para serem quem quiserem ser. Esperamos que continuem e que não desistam de suas (re)voltas. Disso depende o futuro de todos nós.

* Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), tem mestrado e doutorado na área de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, ambos concluídos também na USP. Atualmente é coordenadora do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[1] KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 95.

[2] BELCHIOR. Comentário a respeito de John. LP: Era uma vez seu homem e seu tempo. 1979.

[3] ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[4] VELOSO, C. Nu com a minha música. Álbum: Outras palavras. 1981.

[5] ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 189.