Por Camila Backes e Elisandro Rodrigues

A literatura contemporânea tem sido caracterizada – segundo, entre outros autores, Roland Barthes e Antoine Compagnon – por processos que destacam escrita e leitura como uma composição de extrações, cortes e apropriações. Recentemente, Villa-Forte lançou o livro Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI, no qual trabalha com o conceito de escrita não criativa para falar das práticas de apropriação. De acordo com Villa-Forte, a apropriação é entendida “como o ato de utilizar algo produzido por outra pessoa com a finalidade de propor, expor, mostrar, apresentar, vender esse algo associado a uma segunda assinatura”[1].

Esse gesto apropriativo é pensado como um modo outro de pensar a autoria, de criar algo diferente e trabalhar de forma inventiva utilizando-se de um material já escrito, como um ready-made. Benjamin, no livro Passagens, comenta sobre a sua prática de apropriação de citações, a qual chama de montagem literária. “Não tenho nada a dizer [sobre a montagem literária]. Somente mostrar. Não vou roubar nada de precioso nem me apropriar de fórmulas espirituosas. Mas sim, dos arranjos, dos restos: não quero fazer o inventário disso, mas permitir-lhes obter justiça da única maneira possível: utilizando-os”[2].

O norte-americano Kenneth Goldsmith propõe uma radicalização do ready-made, à qual dá o nome de uncreative writing: escrita não criativa. O que as práticas de escrita não criativa fazem é uma forma de apropriação ou, como diria Benjamin, de utilização de um texto para outros arranjos em uma composição literária. Alguns exemplos desses processos podem ser vistos nas obras Traffic, Day e Sports. Para Goldsmith, existe a necessidade de “novos modos de escrita, que usem de textos já existentes”[3] para uma nova transmissão. A escrita não criativa faz uma apropriação do texto do outro de forma inventiva a fim de propor algo novo. No caso de Traffic, por exemplo, Goldsmith utiliza como procedimento a transcrição para o formato livro dos boletins de trânsito transmitidos por uma rádio de Nova York em véspera de feriado. Aqui no Brasil, Marília Garcia e Leonardo Gandolfi realizam um tipo de tradução que chamam de versão dublada, com boletins de trânsito na véspera de final de semana em São Paulo.

Leonardo Villa-Forte, em texto para o blog da Revista Serrote, comenta que a prática de Goldsmith é baseada na ação de recepção e reaproveitamento. Uma das premissas da escrita de apropriação é criar os textos de uma forma diferente, escrever de outra maneira, fazer algo novo, uma outra coisa; “na escrita de apropriação, o escritor se transforma num gerenciador de informação, um processador de texto, um banco de dados em permanente arquivamento e manipulação de diversas categorias de linguagem: a fala cotidiana […], documentos frios […], o discurso anônimo na internet […], jornais impressos […] e textos literários, seja um único livro […] ou vários”[4]. Villa-Forte[5] chama essa prática de autoria como autor curador ou autor montador. O pesquisador francês Georges Didi-Huberman[6] se debruça em várias de suas obras sobre o conceito de montagem. Para ele, a montagem é a arte de produzir uma forma que pensa a diferença em uma transgressão das fronteiras disciplinares. Pensar no escritor como um montador é operar com uma narratividade que desloca as intencionalidades e pensar nos efeitos de transmissão.

Outra obra que poderíamos destacar nessa mesma vertente é o livro do escritor norte-americano Jonathan Safran Foer, Tree of Codes[7], considerado um livro impossível pela dificuldade de lhe atribuir lugar de nomeação dentro da categoria de livro, objeto de arte ou até escultura. Tal obra é a produção obtida através de um processo de corte e esburacamento a partir de outra obra, A rua dos crododilos[8], do escritor polonês Bruno Schulz, escrita originalmente em 1934. O resultado é um livro-escultura de páginas esburacadas e cortadas, no qual o apagamento e a ausência são a presença principal, o que nos lança a importantes considerações no campo da psicanálise[9]. Tal campo do conhecimento tem sido considerado, desde sua criação, como um saber que se posiciona eticamente de forma diversa em relação à ciência que procura abarcar um saber completo e controlar todas as suas lacunas. É neste ponto que a psicanálise ocupa o lugar da diferença. A aposta da psicanálise se faz na consideração de que é justamente em um espaço no qual o vazio possui papel essencial que há uma abertura para o sujeito, considerado como um sujeito do inconsciente e, por isso, um sujeito dividido entre verdade e saber, entre desejo e gozo. Assim, a psicanálise também tem um posicionamento diferente no que concerne à transmissão de seus conceitos. Para Lacan, a verdade é o que não pode se dizer por inteiro, ela é “o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de não a levar até o fim, de só se fazer semi-dizê-la”[10]. Tal consideração não é sem consequências. A partir da linguagem, a verdade pode apenas se semi-dizer, o que implica a consideração de uma aposta ética da psicanálise em considerar o vazio da experiência. A verdade seria, então, o ponto de falta particular que a linguagem não pode abarcar por completo.

Tais produções, típicas de um momento da literatura contemporânea, também nos aproximam daquilo a que nos orienta a formulação de Lacan: frente ao objeto artístico, a posição possível para o leitor é a de um “catador de migalhas”, tratando este de lidar com os restos, com aquilo que decanta de sua posição frente ao real. A partir disso, a pergunta que muitas vezes se coloca é: como transmitir um saber-aí-fazer na clínica e na ciência, se partimos de uma forma “toda” que se limita ao campo da representação? As novas formas literárias na contemporaneidade, que realçam, entre outras coisas, o não todo, o vazio e as apropriações, têm nos apontado um caminho fértil na relação entre literatura e psicanálise. Maneiras inventivas e tão atuais, que talvez não puderam ser postas em cena por Freud – que viveu o apogeu do gênero romance -, surgem hoje tanto como potência da arte e da literatura para talvez nos sugerir um caminho possível da transmissão e do savoir-y-faire quanto como a localização de um não todo para a psicanálise.

Camila Backes é psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e psicanalista. É mestre e doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Seus principais interesses de pesquisa, intervenção e extensão são na área da relação entre psicanálise, literatura, educação, saúde e inclusão.

Elisandro Rodrigues é pedagogo, doutorando em Educação (Unisinos) e mestre em Saúde Coletiva (UFRGS). Possui experiência na área da Educação e Saúde Coletiva, com ênfase nos seguintes temas: educação em saúde, educação na saúde, saúde e educação, escrever na saúde, escrita, montagem da escrita e do pensamento em educação e saúde.

[1] VILLA-FORTE, L. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 20.

[2] BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., [1ª, 8] p. 764.

[3] GOLDSMITH, K. Abaixo a criatividade! Entrevista concedida a Bruno Yutaka Saito. Valor econômico, São Paulo, 22 mar. 2013. Disponível em: <http://www.valor.com.br/cultura/3056952/abaixo-criatividade>. Acesso em: 10 jan. 2020.

[4] VILLA-FORTE, L. (2016) O autor como apropriador. Revista Serrote. Instituo Moreira Salles. Disponível em: https://www.revistaserrote.com.br/2016/08/o-autor-como-apropriador-por-leonardo-villa-forte/, acessado em 17 de fevereiro de 2020.

[5] VILLA-FORTE, L. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019.

[6] O conceito de montagem permeia uma parcela da obra de Georges Didi-Huberman. Citamos três para conhecimento: DIDI-HUBERMAN, G. Imagens Apesar de Tudo. Lisboa: KKYM, 2012; DIDI-HUBERMAN, G. Diante da Imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013d; DIDI-HUBERMAN, G. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015a; DIDI-HUBERMAN, G. Remontajes del tiempo padecido. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Biblos, 2015b. Ver texto: RODRIGUES, Elisandro; SCHULER, Betina. Montagem do pensamento e da escrita acadêmica em educação: conversações entre Deleuze e Didi-Huberman. ETD – Educação Temática Digital, v. 21, n. 1, p. 23-46, 8 jan. 2019.

[7] FOER, J. Tree of codes. London: Visual Editions, 2010.

[8] SCHULZ, B. Ficção Completa. Tradução de Henryk Siewierski. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

[9] Ver a tese de doutorado: BACKES, C. Poética da extração, literatura e psicanálise: o (des) fazer a forma, o estilo e a transmissão do impossível. 2018

[10] LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 124, aula de 20 de março de 1973.