Por Fernanda Zacharewicz*

Obvivamente não foi acaso a vivência que tomou meu corpo e minha alma no final de semana passado. Há anos assino a temporada da São Paulo Companhia de Dança. Vamos assistir ao balé, sentamos nas mesmas poltronas, conhecemos quem senta atrás que também está lá há anos. Fizemos laço, trocamos caronas, jantamos juntos após os espetáculos. Quando alguém de nós falta nos perguntamos: será que fulano viajou? Será que vem na próxima semana? Melhor ligar… Sem falar, sabemos que temos esse encontro marcado. O acaso nos proporcionou esse laço.

E ontem fomos surpreendidos pela estreia de Anthem, de Goyo Montero. Todo o corpo dos bailarinos está marcado, cada músculo está ali, presente na coreografia, presente nas diversas paixões que são representadas. O início nos apazigua, são cenas de amor que envolvem e fazem admirar a leveza da técnica que quase inebria.

Mas a coisa muda e outras paixões são postas no palco. De repente sou transportada para o meio do texto freudiano “Psicologia das massas e análise do eu”. Exatamente para a parte em que Freud se refere a que o ódio a uma pessoa ou instituição pode ter efeito unificador. E nisso também está posto o corpo. É com o corpo que interagimos com os outros sujeitos, é o corpo que nos acompanha. É o corpo que pode ser libidinizado, que pode ser integrado à comunidade humana, mas é esse mesmo corpo que pode ferir o próprio sujeito ou ao outro, por atos agressivos ou pela intenção, ainda que inconsciente, de causar repulsa.

O que o nosso próprio corpo porta de cada um de nós? O que ele importa a cada um de nós? Nessa permanente troca com o semelhante ele se dá em imolação? O que ele vorazmente abocanha do corpo do outro?

São conhecidos os objetos pulsionais: o seio (pulsão oral), as fezes (pulsão anal), o olhar (pulsão escópica), a voz (pulsão invocante). Em determinado momento eu ouço os urros dos bailarinos. Não posso afirmar com certeza de que se trata. Seria raiva? Medo? Coragem? O som primitivo invade os ouvidos, não é possível fechá-los e sigo olhando impactada. Goyo Montero, o coreógrafo, afirma: “A voz humana se converte em uma canção e esta canção se converte em algo com o qual nos identificamos.”.

Estou assistindo a um balé. Os músculos passam a ser mais visíveis, a agressividade torna-se patente, são os mesmos bailarinos que dançam desde o início, mas se transformaram. Transformaram-se seus corpos ao ouvir esse berro primitivo.

Há saída para esse corpo encerrado no defender ou agredir? Falamos muito em todo o percurso de formação do psicanalista que a análise não se dá sem o corpo, que uma libra de carne é deixada no divã a cada vez. Mas quais os alcances desses dizeres? Quanto estamos implicados além das elucubrações teóricas que, muitas vezes, podem arrastar o processo analítico por décadas?

A cada temporada da SPCD, penso: quais foram os caminhos libidinais que transforam tal organismo nesse corpo? Como essas visas foram sulcadas? Como as vias de cada corpo são sulcadas? A palavra, muito além do urro, é o que libidinizou e fez possível esse corpo? Pode então a palavra na análise abrir novas vias de facilitação e encontrar caminhos alternativos para esse corpo preso no eterno retorno do urro primitivo?

Saímos, eu e meus colegas de temporadas, calados. Será que nesse momento duvidamos de que a permanência do laço é possível depois de não podermos ter tampados os ouvidos? Seríamos agora testemunhas da impossibilidade?

De maneira alguma, hoje escrevo. Escrever é a busca de fazer laço. Eu cometi um ato falho logo no início desse texto, escrevi obvivamente ao invés de obviamente. Resolvi deixar isso, pois Isso fala.

* Fernanda Zacharewicz é psicanalista e editora da Aller Editora.