Por Fernanda Zacharewicz*

Não é possível escrever sem ler. Escreve-se com o que se acabou de ler, mas com o que foi lido durante toda uma vida e agora retorna. Ler é afastar-se, para – logo a seguir – mergulhar, nadar no fundo, quando se é capaz de prender a respiração por mais tempo. Para enxergar as profundezas, deve-se olhar, prender a respiração. Escrever é voltar à superfície para tomar fôlego e mergulhar novamente.

Quanto aguentamos segurar a respiração e mergulhar para olhar a libido do sujeito? É justamente esse desafio que Freud lança quando, em 1905, publica “Três ensaios sobre a sexualidade”. Em suas publicações anteriores, ele já tinha ousado afirmar que o homem não é senhor de suas decisões e agora ia um pouco mais além: afirmava a preponderância da sexualidade na vida humana. A pergunta que poderia me fazer é: como isso foi recebido na sociedade burguesa vienense do início do século XX? Mas, vamos lá… isso está fácil. Segura mais um pouco a respiração, olha aí, logo ali… como essa afirmação é recebida na sociedade em que vivemos, especificamente em março de 2020, época de confinamento em decorrência de um vírus que nos tira o fôlego?

Pois é… Vamos lá, vamos nos permitir dar outras voltas. Alcançar nosso objeto pelas bordas, pois, se atacarmos de frente, as resistências se fortalecem, o nevoeiro de mecanismos de defesa aparece e nossa visão se nubla.

Em tempos de confinamento, resolvi ler Decameron de Boccaccio. O autor italiano escreve essa obra entre 1349 e 1351 (ou 53), logo após a peste negra, que arrasou a Europa. O livro traz dez personagens, 7 mulheres e 3 homens que decidem abandonar Florença e passar o período de reclusão nas casas de campo que lhes pertencem. Em sua rotina no isolamento, é incluído um período do dia no qual cada um é responsável por contar uma história. Decameron (do grego deca: dez e emerai: dias) é composto por 100 contos, divididos em dez jornadas. Carlos Berriel escreve que essa narrativa “é, em si, uma resposta ao caos que a peste trouxe para a cidade […] a imagem ideal de uma renovada forma de vida civil”.1 Para quem não quiser ler o livro, tem o filme de Pasolini (1971), que mantém o título da obra original e apresenta nove das histórias escritas por Boccaccio.

Os contos trazem a ironia maliciosa característica do autor e vários tratam do desejo sexual, do erotismo. Leio que, com a peste, o que permanece é o humano, demasiado humano. Auerbach aponta que “trata-se agora, sem sombra de dúvida, do amor terreno. […] a amada não é mais a senhora inatingível ou uma encarnação do objeto divino, mas o objeto do desejo sexual.”2

Os diversos encontros amorosos ou sexuais contados pelo autor italiano apontam, segundo Auerbach, para uma “moral amorosa” na qual “toda a astúcia e embuste” são permitidos contra “outras forças avessas ao amor”.3 Mas há uma exceção: o conto do frade Alberto. Ele é o único que é punido ao final. Seu castigo deve-se por ter enganado o objeto amoroso, por não ter obtido honestamente seu amor. Esse é o limite estabelecido por Boccaccio: o compromisso com o próprio desejo.

Permito-me saltar 400 anos na história da literatura e lembrar de O diabo amoroso de Cazzote.4 A frase mais célebre desse livro é: Che vuoi? Somos nós sujeitos capazes de responder à altura a tal interpelação?  Ou nos escondemos, caminhando à meia-luz, no jogo de sombras que a moral civilizada tenta impor?

Voltemos a Freud. O que permanece é o desejo, e, como Freud apontava já em 1905, o desejo é o desejo sexual. Podemos sublimá-lo de diversas formas, como fazem esses personagens que se sentam a desfiar histórias para dar conta do horror. Sabemos que os estudos, as artes, são escolhas privilegiadas de sublimação. Mas há um resto não sublimável, como lembra Kubrick na última fala em De olhos bem fechados (1999). Quem puder mergulhar e ver, veja. Ou: quem puder desejar, deseje.

*Fernanda Zacharewicz é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e editora da Aller Editora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – BERRIEL, C. Introdução. In: BOCCACCIO, G. Decameron. Tradução de Ivone C. Benedetti. Porto Alegre: L&PM Editores, s/d. Edição eletrônica.

2 – AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 197.

3 – Ibid.

4 – CAZZOTE, J. O diabo amoroso. In: LEITE, M. P. S. O Deus odioso: psicanálise e representação do mal. São Paulo: Escuta, 1991.