Por Felipe Grillo[1]

Uma das perguntas que não quer calar na pandemia é Ficou gravado?, repetida ad nauseam em chats de salas de reuniões virtuais, grupos de WhatsApp etc. São centenas de eventos on-line e lives nas redes sociais, oferecidos em abundância de uma hora para outra, nunca antes tão explorados quanto a partir do confinamento (físico e não social, vale distinguir). Se por um lado a oferta possibilitou para alguns o acesso e a troca a longas distâncias, por vezes inviáveis num momento anterior, por outro, acentuou a angústia de nada perder e o desespero de querer dar conta de tudo. E nem vamos entrar aqui na discussão sobre direitos intelectual, de imagem, de reprodução, tópico não menos importante. Entretanto, colocarmos na berlinda tal pergunta não quer dizer que não reconheçamos a importância da gravação enquanto registro histórico para determinadas instituições. Não é isso o que está em jogo, sem dúvida, mas a demanda cíclica por gravação que surge de grande parte do público em tempos pandêmicos.

Tanta oferta na rede tem deixado algumas pessoas desbaratadas. Não raras vezes, inscrevem-se em mais de um evento ao mesmo tempo ou então fazem a inscrição sem nem saber exatamente do que se trata o que supostamente irão assistir. O importante é não perder nada. E quando ocorre de perderem, perguntam: Ficou gravado? Mas, afinal, o que se quer que fique gravado nesse pedido insistente por gravação? E, ainda, o que não se quer – ou não se pode – perder naquilo que se perde?

Inicialmente, com o isolamento físico provocado pela pandemia da covid-19, veio a descoberta e o fascínio pelas possibilidades do on-line. Atividades antes com poucos participantes, agora estão cheias e com pessoas não apenas do mesmo estado, mas de outras regiões do nosso extenso país e, inclusive, residindo em outros países e de distintas nacionalidades. Passamos a compartilhar para além-fronteiras aulas, seminários, conferências, shows e peças de teatro até então restritos ou fechados a alguns poucos. Um estranho frisson rolou no ar enquanto tudo era novidade.

Um mês, dois meses, três meses se passaram e, de repente, o número de mortes tornou-se uma notícia insuportável. A novidade do on-line já não era mais tão novidade assim, e a saudade do que vivíamos sem saber que vivíamos se instalou com força. Perdemos a cumplicidade do olho no olho, o abraço acalorado, o cheiro roubado no cangote, o timbre da voz envolvente, que deixam marcas registradas de forma única e nem de longe podem ser reproduzidos através dos aparelhos tecnológicos. O que até então ficava gravado na memória e no corpo devido à presença física no encontro com o outro, de repente, se perde no virtual e retorna no pedido recorrente por gravação. Aquilo que é insubstituível no inconsciente se dissolve em uma série infinita, descobriu Freud. Nessa conta que não fecha, o que resta é justamente o que promove a incessante busca por recuperar o que foi perdido, nunca reencontrado.

A dificuldade de perder não é característica de um tipo específico. Quem nunca lamentou-se de perder a fala de alguém que tanto admira ou o show da banda que toca a música da sua vida e desejou que tivesse ficado algum registro? Ter a posse do arquivo gravado pode ser apenas um adiamento da perda, na crença de que amanhã ou depois será possível enfim dar conta de tudo. De certo modo, estamos todos, em maior ou menor grau, procurando rechaçar a falta, tida como um incômodo e índice de fracasso. No entanto, saber perder pode ser um alívio e tanto! E saber perder não para poder ganhar, como escutamos por aí. Perder sem ganho nenhum. Difícil imaginar na sociedade do Viagra, não é mesmo?

Para isso se faz preciso percorrer uma travessia que vai de uma lógica da impotência-potência (acreditamos piamente na potência; é o sedutor você pode tudo do American Way of Life) a uma lógica do possível-impossível (o que não tem remédio remediado está e, portanto, bola pra frente!); de ser o que falta ao Outro (fantasia de ser o objeto de brilho fálico que completaria o Outro) à falta-a-ser do falasser (perda inevitável que nos acomete ao entrarmos na linguagem; não há um único e último significante que nos defina, isto é, a essência só poderia ser um produto da linguagem); do imaginário da falta à falta estrutural. Ou, se preferirem, de forma mais simples e óbvia: toda escolha implica uma perda.

Em última instância, a pergunta Ficou gravado? seria um deslocamento da pergunta sobre a perda maior, aquela para a qual não temos resposta e, mais do que nunca, nos bate à porta: a pergunta sobre a morte. Porque, ao escolhermos a vida, inevitavelmente vem no pacote a morte.

FOTO: BARROS, Lenora de. Procuro-me. Impressão offset sobre papel, 2002. Acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Disponível em https://mam.org.br/acervo/2006-073-000-barros-lenora-de/. Acessado em 8 de setembro de 2020, às 11h04.

[1] Psicanalista, membro dos Fóruns Rio de Janeiro e Região Serrana/RJ (em formação) da EPFCL-Brasil. Mestre em psicanálise pela UERJ. Instagram: @_felipegrillo_