Por Lucília Maria Abrahão e Sousa*

Diante da barbárie, que (e como) dizer? Em sua rede social, o escritor Valter Hugo Mae escreveu: “Querida Agatha Félix, meus estudos, meus livros, minha sensibilidade, todos os meus sonhos de melhorar o mundo, todas as pessoas que amei e que cuidei, foram inúteis para você. nada do que sou, do que fiz e do que disse foi bastante para impedir que te proibissem de viver. sua cor segue sendo proibida, seu género segue sendo proibido, agora sua idade é proibida também. lamento muito. falhamos todos. somos cidadãos e cidadãs de um tempo novamente miserável. #agathafelix.”

Um silêncio áspero e siderado pelo horror me fez novamente estacar: como continuar diante de um corpo de criança explodido por um tiro de fuzil disparado por um adulto no passeio público de uma cidade que já foi capital nacional? A náusea de Drummond com sua rosa a nascer no asfalto, furando o meio inóspito e rude, deixa de ser um poema de quase esperança e torna-se a realidade de uma criança que tomba assassinada pela política belicosa e desumanizadora do executivo carioca. Uma criança dentre outras, a última vítima na ciranda mortífera em curso. E nós caímos juntos, enquanto humanidade inteira em frangalhos.

Nomes próprios de crianças com diferentes idades, cartazes sustentados por mãos infantis e a sombra de um Cristo ironicamente com braços abertos marcaram o ato no ponto turístico da cidade denominada maravilhosa. Uma série de manifestações replicou na trama social como um levante de indignação diante da obscenidade de crianças serem executadas sumariamente em situações cotidianas. A fotografia acima coloca em discurso a voz dos que são vítima da naturalização do sentido de que o Estado teria autorização para matar. Os mortos comparecem nomeados e estandartizados para denunciar o horror, mais ainda porque crianças, ainda mais porque pobres, ainda mais porque sua existência – mesmo tendo nome registrado, estando com uniforme escolar, fazendo curso de inglês ou balé – não é reconhecida como tal, tampouco chancelada pelo Estado como sinônimo de cidadania. Essa suposta permissão de matar tem ganhado consistência nos últimos meses e o aparelho repressivo de Estado engorda a olhos vistos em diferentes instâncias oficiais, criando as bases para a legitimação de uma prática de matar moradores das comunidades e das periferias.

São muitos os nomes com sobrenomes e as estatísticas de corpos sentenciados à morte pelo Estado que alimenta a moenda imaginária de que as operações belicosas são inevitáveis, necessárias e legítimas como política de segurança pública no enfrentamento do “crime organizado” (e aqui caberiam todas as justificativas, inclusive para o abuso no uso da força). Derivam disso, não apenas a folha branca de papel e a tinta vermelha que escorre da escadaria onde foram colocados, mas os vários gritos de comunidades, movimentos sociais, organizações de direitos humanos e setores da sociedade civil organizada, todos atônitos com os comandos mortíferos em curso. “Parem de nos matar” e “Escola, não atire”, como a imagem abaixo materializa com crianças abanando lenços de papel branco para um helicóptero em ação, cavoucam na língua modos de elaborar o inominável e de fazer uma barra simbólica ao avanço da matança pelas polícias.

Todas as imagens trazidas até aqui apontam para um furo difícil de bordejar com palavras, visto que nos toca no que existe de mais obsceno na barbárie: o não reconhecimento do direito do outro à existência. Ginzburg (2019, p.14) acaba de publicar um longo ensaio sobre as “formas de interpelar os desejos assassinos” em que afirma: “(…) Que desejo é esse, que torna um ser humano alvo de eliminação? Existe algo específico, na constituição de seres humanos que, por alguma razão, em algum momento, admitiram a ideia de matar os outros?”. Tendo no horizonte a análise de duas obras literárias, ele considera ainda ser preciso tomar “uma cena de violência (…) como um enigma que resiste à compreensão, e não como parte de uma rotina habitual.”. Pela psicanálise sabe-se que o que resiste à compreensão e o que retorna como tragédia reclamam palavra, vida franzina de significantes que possam produzir um anteparo ao real da morte.

De certa forma, Schwarcz (2019, p. 25) o faz nos remetendo à constituição histórica do país: “Portanto, a quem não entende por que vivemos, nos dias de hoje, um período tão intolerante e violento; a quem recebe com surpresa tantas manifestações autoritárias ou a divulgação, sem peias, de discursos que desfazem abertamente de um catálogo de direitos civis que parecia consolidado; a quem assiste da arquibancada ao crescimento de uma política de ódios e que transforma adversários em inimigos, convido para uma viagem rumo à nossa própria história, nosso passado e nosso presente.” A autora avança a filigranar as bases escravagistas da nossa fundação como país e cultura, marcando o modo como miséria, cativeiro e morte se combina(ra)m em um sistema desigual e predatório. Afirma ainda, “mais preocupantes são os índices de mortalidade de homens de uma forma geral e, em particular, de jovens homens negros: as maiores vítimas da violência urbana e do acesso precário a recursos médicos (…) os números traduzem condições muito desiguais de acesso e manutenção de direitos, dados de violência elevados e com claro alvo. Revelam mais: padrões de mortandade, que evocam questões históricas de longa, média e curta duração.”. O olhar pelo retrovisor proposto pela autora desenha a base histórica da escravidão como um ponto nodal para compreender as práticas da violência naturalizadas nas relações sociais brasileiras, bem como a forma de tratamento de Estado endereçada a populações periféricas ontem e hoje, já que oferece uma leitura visceral dos “nossos fantasmas do presente”. Acredito que a recorrência de crianças mortas em ações oficiais é o pior deles.

O que a psicanálise tem a dizer sobre isso? Diante da guerra, Freud (2010, [1915], p. 210) faz duas anotações bastante preciosas a respeito do “Estado beligerante” que “se permite qualquer injustiça, qualquer violência que traria desonra ao indivíduo”; a primeira diz respeito à destruição de algo que remetia ao sentido de civilização e humanidade. Afirma ele: “quer nos parecer que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão radicalmente o que era elevado.”. Nesses termos, tal rastro de destruição coloca em xeque sentidos antes atribuídos à comunidade civilizada, quais sejam, “criações” que “incluem tanto os progressos técnicos no domínio da natureza como os valores culturais e científicos”, os quais seriam condição para os povos “resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de interesse” (idem, p. 212). Afora a devastação e o limite do pacto civilizatório, ele indica que “sentimos o mal desse tempo com intensidade desmedida”, ou seja, sinaliza os efeitos que a guerra impõe aos cidadãos em uma operação de perda e de consideração da morte como um dado próximo. “O segundo fator que me leva a concluir que nos sentimos estrangeiros neste mundo outrora belo e familiar é a perturbação ocorrida na atitude que até agora mantínhamos em face da morte.”. Esses dois pontos podem ser atribuídos ao tema desse escrito, pois, além das vidas destroçadas, algo da suposta civilidade humanizada é destroçada a cada criança morta e coloca a nu o quanto a técnica, a ciência e a arte ficam de joelhos na impotência de evitar as cenas em curso. O texto de Hugo Mãe coloca exatamente isso: “nada do que sou, do que fiz e do que disse foi bastante para impedir que te proibissem de viver.”

Eis o dedo que aponta o real, o real da morte, o real do significante perdido para sempre, o real sem anteparo de palavra ou de qualquer elemento da civilização. Sobre ele, Lacan, ao longo do Seminário – Livro 7, define o “que existe de aberto, de faltoso, de hiante, no centro do nosso desejo” (LACAN, 1959- 1960, p. 104) e a partir do que não se completa em idas e vindas do significante, em voltas e novos turnos de procura do objeto que é/está perdido para sempre. Objeto que “(…) não pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal e jamais será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. (…) é esse objeto, Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade.” (LACAN, op. cit., p. 68).

Aquilo que Freud (1895, 1977) designou como constante no aparelho psíquico, em Lacan é definido como aquilo que não cede, não adormece nem se tampona, apenas lança o sujeito em movimentos de “encontrar o que se repete, o que retorna e nos garante retornar sempre ao mesmo lugar” (LACAN, op. cit., p. 94). Irrealizado, intransponível, perdido, trata-se justamente de fenda, hiância, fissura e rasgo inscritos pela perda do corpo da mãe e pela interdição do incesto. Isso engendra uma falta estrutural que Berta (2015, p. 177) denomina “sendo o objeto perdido por definição, o que o sujeito encontra são os signos da Coisa, do impossível do encontro, do mau encontro. Esse é o masoquismo primordial: o encontro faltoso, o encontro de uma fenda impossível de suturar.”.

Ao longo do Seminário – Livro 11, Lacan avança na direção de anotar “algo que é da ordem do não-realizado” (LACAN, 1964, p. 28), cuja materialidade se dá a ver em “tropeço, desfalecimento, rachadura (…) dimensão de perda” (LACAN, op. cit., p.30). Perda sinalizadora de Das Ding, pois “a ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio.” (LACAN, op. cit., p.31). Talvez o mesmo silêncio envergonhado e sem palavra que desfia a nudez da nossa impotência diante das mortes de crianças pelo Estado e diante dessa produção verbo visual de um sujeito criança que mora na comunidade.

À formulação “O helicóptero atira pra baixo e as pessoas morrem” corresponde a seta com uma sinalização de onde fica a “minha casa”, ou seja, tornada alvo de tiros, vulnerável e não reconhecida como lugar da infância. Sobre os lugares discursivos e o modo como as palavras são inscritas na trama sócio histórica e ideológica, Pêcheux introduz uma contundente reflexão sobre “o trabalho do impensado no pensamento” (PÊCHEUX, 2009, p. 176), o que implica considerar no funcionamento da língua a presença de um impossível próprio ao gramatical, que torna nublada e difusa a fronteira entre o sentido e o não sentido. Eis o real da língua, definido como “o impossível que lhe é próprio” (GADET E PÊCHEUX, [1966 – 1983], p.176), impossível de eliminar as ranhuras de equivocidade da língua em seus deslizamentos, impossível de tudo dizer, impossível de nomear com exatidão o pensamento, impossível de promover uma coincidência absoluta entre palavra e mundo. Nesses termos, “(…) o real da língua (…) é cortado por falhas, atestadas pela existência do lapso, do witz e das séries associativas que o desestratificam sem apagá-lo.” (GADET E PÊCHEUX, 2004, p.55).

O fundador da teoria discursiva francesa aponta ainda que, nas tramas de dizer, incide a presença inevitável do real nas disciplinas de interpretação, não como defeito, desvio ou imperfeição a serem corrigidos, mas como condição de “um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos.” (PÊCHEUX , 2012, p. 43). Estamos diante do real, sim, “‘há real’, isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser ‘assim’. (O real é o impossível… que seja de outro modo). Não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra.”. Dá de encontro ao modo de um trombamento, um tropeção e um acidente inesperado, sempre da ordem do inenarrável e impossível de expressar, traduzir e simbolizar. Sem palavras ou com a absoluta falta de condição de dizer, o impossível ronda a língua em sua tarefa de tentar nomear e não ser possível fazê-lo: esse real da língua tanto combina com o estarrecimento diante do horror a que assistimos nos últimos meses.

O real da morte irrompe assim sem anteparo no cru dos corpos infantis executados e passa a engendrar uma série bárbara, regularizada pela política pública de Estado no tratamento destinado aos moradores das comunidades e periferias. Um real escancarado no corpo mutilado que tanto atropela a possibilidade de existir palavra ali, fazendo explodir um silêncio assustador, quanto reclama exatamente que algo possa ser dito a partir dali, ainda que em forma de garatujas e balbucios precariamente estabelecidos. Bordar em torno do impossível é uma aposta radical da psicanálise na direção de oferecer uma escuta para que algo disso possa ser dito e escutado, para que o mortífero pela palavra possa produzir formas de simbolizar a destruição, a morte e o luto, para que o encontro do humano fadado ao insucesso da não proporção tenha um lugar de acolhimento e possa produzir efeitos.

Referências:
BERTA, S. L. Escrever o trauma, de Freud a Lacan. São Paulo, Annablume. 2015.
FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: Obras completas v.12, Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2010.
GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível – o discurso na história da linguística. [1981] Campinas, Pontes, 2004.
GINZBURG, J. Formas de interpelar os desejos assassinos. In: Suplemento Pernambuco, n. 163, Recife: Cepe Editora, 2019.
LACAN, J. Seminário, Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. [1964]. Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1973.
LACAN, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. ([1959 – 1960]). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008.
MILNER, J. C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas. 19987.
PÊCHEUX, M. O discurso – estrutura ou acontecimento. ([1983]). Campinas, Pontes, 1997.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2.ed. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1995.
SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SOUSA, L. M. A. O vazio como condição: um movimento de sentidos a partir do horror. Niterói. Revista Gragoatá, n. 34, p. 61-76. 2013.

* Graduação em Letras (1988) pelo Centro Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto. Doutorado direto (2002) em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Livre Docência (2009) em Ciência da Informação pela mesma instituição. Docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo, onde dá aulas e orienta alunos de graduação, mestrado e doutorado, além de supervisionar pós-doutorados. Parecerista ad hoc do CNPq e FAPESP. Membro da ABRALIN, ALED, GEL, BRASA, AIL e do GT de Análise do Discurso da ANPOLL. Especialista em Análise do Discurso e Psicanálise. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito”, cadastrado junto ao Diretório de Grupos do CNPq. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.