Por Fábio Luís F. N. Franco*

Que a vida tenha se tornado, há bastante tempo, um objeto privilegiado da política, é uma tese bem estabelecida por uma tradição crítica que se convencionou chamar biopolítica. Foucault, Negri, Agamben, Esposito, para mencionarmos apenas os nomes mais conhecidos, têm em comum a ideia de que a modernidade europeia nasce no ponto de cruzamento entre ciências da vida, política e teoria social. A divisa da política moderna já não seria “fazer morrer, deixar viver”, que caracterizava os regimes de poder organizados em torno da figura do soberano, mas “fazer viver, deixar morrer”.

Com essa fórmula concisa, Foucault procurava mostrar que, desde o final século XVIII, os dispositivos hegemônicos de poder-saber objetivavam gerir a vida, individual ou coletiva, para a manter ou fazê-la se desenvolver.  Ao mesmo tempo, e como consequência disso, a morte, que até então era a grande personagem das cerimônias de manifestação do poder soberano, desqualifica-se, restando a ela, quando muito, um papel meramente coadjuvante na política. Em síntese, na modernidade, “a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder. Ela está do lado exterior, em relação ao poder […]. O poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado[1]”.

O que teria passado despercebido ao astuto olhar de Michel Foucault para que ele sustentasse a exclusão da morte do campo do poder? A resposta só pode ser encontrada se deslocarmos nosso olhar das regiões centrais da Europa para as periferias europeias ou globais, nas quais é possível apreender o anverso do projeto modernizador: o genocídio colonial. Imbricada a uma biopolítica da população e dos corpos, a experiência periférica escancara, desde o século XVI, a existência de uma necropolítica, nos termos que utiliza o sociólogo camaronês Achille Mbembe. De lá para cá, as zonas de exceção circunscritas às regiões coloniais de Além-mar tornaram-se a norma da política contemporânea em todo o planeta.

Para Mbembe, a arqueologia do terror moderno conduz-nos necessariamente à escravidão e ao modo de produção colonial organizado em torno do sistema do plantation. No latifúndio monocultor, o escravo é resultado de uma tríplice perda: de um lar, porque foram sequestrados do seu território; dos direitos sobre seu corpo, na medida em que a sua vida passa a ser propriedade do senhor; e, finalmente, do seu estatuto político. Reduzido a uma forma de existência no limiar entre o orgânico e o inorgânico, entre o animal e a coisa, a vida do escravo deveria ser mantida como uma sobrevida, em condições mínimas para que a sua função produtiva permanecesse viável.

Da necropolítica colonial as suas formas atuais, é possível observar a permanência de um certo conjunto de elementos. Primeiramente, o massacre populacional direto ou uma política sistemática de administração de condições mortíferas — tal como ocorre na Faixa de Gaza, onde as agências militares israelenses produzem o colapso dos meios de sobrevivência, controlam o influxo de eletricidade, petróleo, concreto, comida, suplementos médicos, de forma a manter as condições de vida as mais baixas possíveis, no limiar da crise humanitária[2]; segundamente, a necropolítica ultrapassa os limites da estatalidade a medida em que o direito de matar se aliena do Estado para um conjunto heteróclito de grupos armados locais, milícias, formações paramilitares, empresas privadas de segurança, transformando a coerção e a violência em uma commodity.  É por essa razão que Mbembe nota a existência, na contemporaneidade, de uma verdadeira “economia política da violência[3][4], relacionada à formação de um mercado e, ao mesmo tempo, de uma rede de “serviços” voltados para produção da morte em todas as escalas.

Apesar do próprio Mbembe não ter tido a pretensão de cunhar um novo conceito quando publicou pela primeira vez o artigo Necropolitcs[5], o termo difundiu-se por diferentes espaços, da universidade aos movimentos sociais periféricos, tornando-se uma categoria importantíssima para a crítica social contemporânea nas margens do capitalismo global.  De fato, o termo inventado por Mbembe lançou luz sobre um conjunto de dispositivos voltados para a gestão e produção da morte, que, segundo os espaços e os tempos, associam-se a outras tecnologias de poder e regimes de saber.

Contudo, os desdobramentos das investigações sobre a necropolítica feitas em continuidade com a pesquisa de Mbembe apontaram para outros aspectos dos dispositivos necropolíticos, pouco explorados nos textos do teórico camaronês. Dentre eles, destaco os efeitos de subjetivação decorrentes das políticas da morte e dos mortos, o que nos leva a considerar a necropolítica como uma forma de gestão de certas modalidades de patologias do social ou como uma necrogovernamentalidade[6].

Para ficarmos apenas com um desses efeitos de subjetivação, destacamos a forma como o luto público de algumas mortes não podem encontrar inscrição no discurso social. Lembremos, por exemplo, da preocupação da ditadura civil-militar brasileira de enviar forças de segurança em velórios de lideranças políticas assassinadas pelo Estado para coagir seus familiares e amigos, dissuadindo-os, pelo medo, de se manifestarem[7]. Situações como essas levaram a filósofa norte-americana Judith Butler a se perguntar: “a distribuição desigual do luto é uma questão política de imensa importância. […] Por que os governos procuram com tanta frequência quem será e quem não será lamentado publicamente?[8]”.

Certamente, há várias razões. A partir da análise dos efeitos das mortes produzidas nas guerras do Iraque e do Afeganistão nas populações desses países, Butler identifica que a gestão diferencial do luto visa, dentre outras coisas, generalizar a melancolização como patologia social : “o que também se depreende dessa proibição de manifestar o luto publicamente é um mandato a favor de uma melancolia generalizada (e da desrealização da perda), quando as vítimas dos Estados Unidos e dos seus aliados acabam por se perceber já mortas[9]”.  Em outras palavras, impedidos de lamentar publicamente suas perdas, certos grupos sociais tendem a se identificar com o furo, com o vazio deixado pela morte não simbolizada. É assim que podemos ler a célebre afirmação de Freud: “[…] a sombra do objeto caiu sobre o Eu, que então pode ser julgado por uma determinada instância como um objeto, como o objeto abandonado[10]”.

No caso do luto normal, o sujeito pouco a pouco realiza a desvinculação da libido das representações do objeto perdido, liberando-a para ser investida em um novo objeto. Na melancolia, no entanto, o reinvestimento em um novo objeto de amor não ocorre. Ao contrário, aprofunda-se o rebaixamento significativo do sentimento de autoestima, a sensação de  “um enorme empobrecimento do Eu[11]”, acompanhado por autoacusações que o melancólico dirige sem parar contra si mesmo. A formação dessa instância crítica produz o desaparecimento do próprio poder como agente externo de coerção. Frente ao poder representado pela instância moral crítica, o Eu-abjeto expõe seu próprio fracasso. Diante desse Eu, o Outro se reestabelece como o Outro indiciador, acusador. O efeito subjetivo da melancolia é a paralisia, o silêncio, a subordinação do sujeito-abjeto. A agressividade internalizada e revertida contra o Eu é uma violência não apenas domesticada, mas gerida de forma a transformá-la de ameaça em cúmplice do governo social. Na formulação cabal de Butler: “A melancolia é uma rebelião que foi suprimida, esmagada. […]. O poder do Estado para evitar a fúria insurrecional faz parte das operações da psique. A “instância crítica”do melancólico é um instrumento social e psíquico. Essa consciência superegoica não é simplesmente análoga ao poder militar do Estado em relação a seus cidadãos: o Estado cultiva a melancolia entre os cidadãos precisamente como forma de dissimular e deslocar a sua própria autoridade ideal[12]”.

No entanto, não sustentamos que melancolização necrogovernamental produza a desativação de toda forma de resistência. Nenhum aparato governamental realiza a pretensão de um governo total, pois há sempre algo que resta ingovernável – nesse sentido, também podemos ler o impossível de governar freudiano e seus desdobramentos na teoria lacaniana dos discursos. Quanto a isso, é preciso apontar para a existência de uma plêiade de esforços antimelancólicos nos quais se percebe  a produção de outras gramáticas do luto político, como a ida a terreiros e casas de reza, os sonhos, a composição de sambas, a escrita de cordéis. Evidentemente, a clínica psicanalítica é um dispositivo importante, mas não exclusivo, para a emergência de um sujeito que resiste às formas de subjetivação necrogovernamentais.

* Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), possui experiência nas áreas de Filosofia e Psicanálise, atuando principalmente nos temas psicanálise, teoria das ciências humanas, filosofia política e teoria social.

[1] FOUCAULT, M. .É preciso defender a sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 221.
[2] WEIZMAN, Eyal. Hollow land: Israel’s Architecture of Occupation. London, New York: Verso, 2017.
[3] Necropolítica, una revisión crítica. In: BARRIOS, J. L.; MAC GREGOR, H. C.; EXPÓSITO, M. et alii. Estética y violencia: necropolítica, militarización y vidas lloradas. México: Museo Universitario Arte Contemporáneo/Universidad Nacional Autónoma de México, 2012, p. 131-139. p. 137.
[4] A relação entre necropolítica e capitalismo tal como realizada pelos narcotraficantes mexicanos foi objeto do estudo de VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. [s.l.]: Editorial Melusina, 2010.
[5] MBEMBE, A. Necropolitics. Public Culture 15(1):11-40. [s.l.]: Duke University Press, 2003.
[6] FRANCO, Fábio Luís Ferreira Nobrega. Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil. 2018. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.8.2019.tde-25022019-112250. Acesso em: 2019-09-19.
[7] A Comissão Municipal da Verdade da Prefeitura Municipal de São Paulo relata a presença ostensiva de agentes de Estado durante os velórios e sepultamentos, intimidando parentes e amigos do falecido. O poder incidia claramente nos processos fúnebres. A respeito disso, consultar, por exemplo, SÃO PAULO. Prefeitura Municipal de São Paulo. Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. Comissão da  Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Relatório. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, 2016. p. 147.
[8] BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 65.
[9] BUTLER, J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London/New York: Verso, 2004, p. 64-65.
[10] FREUD, S. Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo: CosacNaify, 2011, p. 61.
[11] Ibidem, p. 53.
[12] BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 198-199.