Por Fernanda Zacharewicz

Escrevo ainda tomada pelo afeto de Os sete afluentes do rio Ota, a que assisti recentemente no Sesc Pinheiros. Havia lido sobre a montagem na imprensa e imediatamente comprei ingresso. Já estava tomada pela peça antes de assistir e da longa crítica publicada só lembrava de quatro pontos: foi escrita após uma visita de Robert Lepage a Hiroshima, surpreso por encontrar uma cidade  cheia de vida; muitos dos atores dessa nova montagem era os mesmos da estreia, há quase quinze anos e a peça durava 300 minutos.

Estão aí os elementos que continuam a acompanhar-me. Já no intervalo eu sabia o que havia me afetado desde o começo: é necessário tempo. Monique Gardenberg, ao dirigir essa peça, sabe disso. É necessário tempo para contar uma história, são necessárias outras voltas sobre o mesmo ponto.

Esse tempo necessário é também o tempo do processo analítico. Tempo para contar cada cena, cada sessão do paciente no divã. Numa certa cena, no final do primeiro ato, eu me perguntava: quando será que ela vai cortar? Não pode durar pouco, mas também não pode ser prolongada, há que ser suspendida. E lá vai ela e faz o ato – como uma psicanalista – certa de sua política e livre em sua tática – ela corta a cena no momento preciso. Saímos para o intervalo como o analisante sai da sessão cortada: descontinuado. Para onde ir a partir daí?

E na próxima sessão, ou, na segunda parte a peça continua, profundamente modificada, mas ainda sim a mesma história, aberta a outros possíveis fazeres.

Enquanto analisantes durante anos nos deitamos no divã, muitas vezes a nos perguntar: até quando? Ainda? Sim, mais ainda. Mais outro corte, mais um sonho, mais um poema, mais uma quantia significativa deixada sobre a mesa do analista.

Como analistas trabalhamos como a diretora Monique: cortamos, damos espaço e voz aos diversos personagens, estamos lá, acompanhando pacientemente desde a poltrona. Sabemos que é necessário tempo, apostamos que outro final é possível. Que é possível fazer com a miséria do romance familiar de cada um uma outra história e no final nos deslumbramos, como Hiroshima deslumbrou Lepage. A história de Hiroshima é escrita muito além da reconciliação do terror das consequências da bomba nuclear e da ocupação americana que se sucedeu logo depois. É escrita a partir disso e além. Assim foi, esse é o fato, mas o que fizemos com isso?

Essa é a história que cada analisante narra no divã. Mas o que ele fará com esses elementos? O que ele fará com os terrores infantis que ainda o assombram, o que ele fará com as intrusões do Real que invadem seu cotidiano? Os sete afluentes do rio Ota nos mostra justamente essa construção, a construção possível além do bla bla blá queixoso. Construção cujo material está lá, dado no próprio relato. Não há invenções mirabolantes, há o saber fazer com o que se tem. Em termos psicanalíticos dizemos: há o saber-fazer aí com seu sintoma.

Como alguns que procuram o nosso consultório, há os que desistem no meio do espetáculo: longo demais, melhor ir jantar ou se perguntam se há razão para contar essa história. Mas os que apostam ficam! Ficam e saem modificados. Por isso não uso o substantivo espectadores para se referir a esses que ficam. Há uma aposta feita desde a compra do ingresso: vamos ver aonde isso vai dar.

Não é essa a aposta da análise? Comparo as entrevistas iniciais à leitura da crítica, à compra do ingresso, ao deslocamento. “Tudo bem, sei mais ou menos do que se trata, vamos ver se rola.” Alguns abandonam o teatro no início do primeiro ato – 50 minutos (ou dez sessões de análise) é tudo que aguentam, querem respostas rápidas, decidem ir jantar, voltar para o conforto de seus lares, ou, como diz Lacan, acordar para seguir dormindo.

Alguns abandonam no intervalo, na suspensão. No momento do indecidível. “Para onde Monique irá a partir daí? Tem jeito de continuar? Ela deveria terminar aqui… está bom, já deu o recado, foi lindo, saí tocada.” Analisantes que abandonam o processo na melhora do sintoma; quando a angústia baixa, se dão por satisfeitos. Não apostam em si mesmos.

Mas há os que retornam e ficam até o final. Com fome, sono ou qualquer outro desconforto apostam: vamos lá, vamos ver até onde podemos ir com isso. Certamente foi essa a aposta de Monique ao retomar o projeto quinze anos depois da péssima crítica recebida na estreia da primeira montagem. Ela e muitos dos atores da montagem anterior puderam retomar a própria história com os personagens, a própria história de seus laços com esse projeto e com os que compartilharam essa jornada. Apostaram e deram outra volta. Quinze anos – o tempo necessário.

O tempo necessário, é esse o tempo de uma análise, tempo das outras voltas na mesma história, tempo da repetição que traz o novo (o que seria melhor do que o teatro para nos ensinar sobre a repetição?). Nova possibilidade do saber-fazer com seu sintoma, com o que há de mais íntimo de cada um de nós. Tempo necessário para que, daquilo que poderia ser a história do horror, surja o delicado.

Mas é preciso apostar. Canta em mim Chico Buarque:

Depois de te perder

Te encontro, com certeza

Talvez num tempo da delicadeza