Por Maria Letícia de Oliveira Reis*

Trata-se de um tempo em que ninguém nos campos e nos portos sabia ler ou escrever. Num ducado da Normandia, o ano 1000 se aproximava. Dois vizinhos se conheceram, ele alfaiate, ela artesã, Jeûne e Colbrune eram seus nomes.

Colbrune amava Jeûne loucamente, ela não encontrava repouso em sua paixão e resolveu procurá-lo. Bem vestida, atravessou a rua e se declarou. Ele disse que precisava de uma noite para pensar. No dia seguinte, vestiu sua cinta historiada, foi ao encontro de Colbrune e lhe disse que a desposaria se ela fosse capaz de bordar uma cinta exatamente como a que ele vestia. Ela trabalhou durante dias, porque queria ser mulher de Jeûne e satisfazê-lo. Um desespero a invadiu quando percebeu que não seria capaz de tecer tão belamente aquela cinta historiada. Perdia a fome e a vontade de viver, e uma noite, enquanto soluçava, um Senhor bateu à sua porta cansado e com fome. Ela o abrigou e o alimentou. Em suas conversas, ela lhe confessou seus sofrimentos e lhe mostrou seu trabalho em vão sobre os tecidos. O Senhor, então, retirou da sacola uma cinta idêntica à que Colbrune pretendia tecer. Ela se espantou e disse que sendo pobre jamais poderia comprá-la. O Senhor lhe disse que, se quisesse, lhe daria a cinta, mas com uma promessa: que ela não esquecesse o seu nome. Colbrune pergunta e depois o repete em voz alta: Heidebic de Hel, sorri achando a tarefa fácil. O Senhor a adverte, diz que em um ano voltaria ali e, se ela não recordasse o seu nome, precisaria ir com ele para seu reino.

O casal já vivia bem e feliz e um dia enquanto bordava, Colbrune empalideceu. O nono mês se aproximava. Qual era mesmo o nome que deveria lembrar? Ele estava na ponta da língua, mas ela não conseguia encontrá-lo.

Agora, pare e pense, por que você acha que estou lhe contando essa história do lindo livro de Pascal Quinard, O nome na ponta da língua[1]?  Para lhes apresentar uma nova forma de lembrar, mostrar que o trabalho da memória percorre a literatura, mas principalmente, como a memória está ligada a um nome. O que é um nome? Como lembrá-lo? O que acontece quando um nome nos falta?

O desamparo da perda do nome, o desamparo da linguagem, a seleção arbitrária da memória do que se deve esquecer, nessa linguagem que falta, nessa memória rala, a literatura insiste e escreve, as pessoas escrevem para sobreviver, para elaborar, respeitando a palavra que falta, a que está somente na ponta da língua. Essa nostalgia do objeto perdido abastece poetas e escritores onde a origem e a morte são, junto ao trabalho da memória, material para esses artesãos da linguagem. Nosso verdadeiro inferno seria a falta da linguagem, a impossibilidade de escrever.

Num país de constante discurso de ódio, em que ouvimos de líderes que estamos em guerra, em que a ordem é a ordem fálica, me sinto aqui “desobedecendo os sinais, de patins, vindo na contramão”, como naquela música do Aldir. Insisto na beleza do trabalho da memória ainda em tempos sombrios, contando-lhes uma história e falando de amor. A função da arte não é retomar a beleza da dor?

No recente e tocante livro de Rosa Montero, A ridícula ideia de nunca mais te ver, a autora inicia sua escrita com uma declaração: “Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos”[2]. Mas antes que isso seja interpretado como uma ode à morte ou ao morrer, o que é importante em sua escrita é que para que ela reconheça a importância desses mortos, ela os nomeia, os relembra, e retomando Antígona, acrescento, os enterra, para seguir adiante. Sem que o livro seja um livro sobre luto e sim sobre a vida, leva a palavra ridícula em seu título, quase como prova de um luto bem feito. Nesse contexto também se localiza o belo livro de Boris Fausto, O Brilho do Bronze[3], que também recomendo vivamente.

Em 2015 defendi uma tese de doutorado intitulada “Da perda de experiência à experiência de perda: um estudo sobre a Erfahrung (Experiência) na teoria psicanalítica, na filosofia e na clínica”. O aspecto subjetivo e constitutivo da perda foi trabalhado a partir de experiências de perda (lutos), e o campo social da perda trabalhei como perda da experiência, tal como foi definida por Walter Benjamin em 1933. A interseção destes dois grandes temas foi amplamente discutida no capítulo intitulado “Experiência Sensível”, no qual me debrucei sobre os relatos de autores que se sentiram convocados a escrever sobre as perdas pelas quais passaram: Roland Barthes e Samuel Beckett. Ambos, cada um ao seu modo, escreveram sob o signo de um luto. Barthes, depois da morte de sua mãe, escreveu, inconsolável, o Diário de luto; e Beckett, sobre a perda pungente de seu Primeiro Amor.

No Diário de luto (2011), o leitor encontra um comentário dos editores acerca da elaboração dos escritos de Barthes, de forma contextualizada em relação a outros textos do autor, indicando como importantes textos de sua obra foram escritos sob o signo da morte de sua mãe. Em 1978, escreveu A preparação do romance e, entre abril e junho de 1979, A câmara clara. Nesse período preparou também o seu curso sobre O neutro. Estariam sugerindo que o autor fez de seu luto um motor de sua escrita? Sobre sua escrita, Barthes afirma em seu diário: “Não quero falar disso por medo de fazer literatura — ou sem estar certo de que não o será —, embora, de fato, a literatura se origine dessas verdades”[4].

Beckett simpatiza com epitáfios e diz, em Primeiro Amor: “O cheiro dos cadáveres, que sinto nitidamente sob o cheiro de relva e do humo, não me desagrada (…) Por mais que se lavem, os vivos, por mais que se perfumem, eles fedem”[5].

Teoricamente, tomei como texto de base, para a apresentação e articulação dessas experiências, Luto e melancolia[6] de Freud. O fator desencadeante da perda culmina no que pode vir a ser um quadro sintomático, num mundo que se torna empobrecido e vazio para o enlutado. O sujeito sempre será interrogado pelo enigma da morte, e a escrita da experiência de perda também diz respeito a um destino estético para tais experiências, numa vida que vale a pena ser contada, de onde surge o impulso para o nascimento do gênero biográfico e autobiográfico.

A reação do sujeito diante do luto segue as leis do inconsciente e coloca o luto em relação à teoria de objeto em psicanálise – talvez a perda do objeto seja o ponto de maior riqueza do texto freudiano, que culmina, para Jacques Lacan, na teoria do objeto a. Como o que foi perdido não pode ser reencontrado, o objeto amado deixa apenas rastros. No seminário da angústia, Lacan escreve sobre este objeto: “Este a, objeto de identificação, para sublinhar com uma referência nos próprios pontos que se sobressaem da obra de Freud, é essencialmente a identificação que está no princípio do luto, por exemplo”[7].

Há, depois da perda, uma decisão do sujeito, uma ação que coloca sua posição em relação à contingência, a uma vida colocada sob termos de destino. Na consolação de uma mãe que tinha perdido seu filho, Sêneca apresentou-lhe dois tipos de discursos de duas outras mães que também haviam perdido seus filhos, uma delas permanece como no dia do funeral, rejeitando o outro filho, e dedica sua vida à memória do filho perdido. Outra mãe, sob o luto de um filho, o enterra sem deixar jamais de pronunciar o seu nome, lembrá-lo, convivendo de forma privada e pública, com vários laços testemunhais da existência dele. Desse modo, Sêneca parece vislumbrar os afetos e sentimentos do fim, diferenciando-os entre luto patológico e suposto normal.

Para concluir, é importante observar que o modo como se posiciona em relação à perda é uma questão política, ética e direciona uma clínica. Ao escrever sobre essa experiência, o que acontece é o surgimento de uma nova experiência. O sentido da vida precisa ser permanentemente reconstruído. Mas isso nem sempre é possível.

* Psicanalista, mulher e mãe, feminista, antifascista. Doutora em Psicologia Clínica pela USP, autora de Infância e memória (Editora CRV Curitiba) e curadora de Perché mi piace (Calligraphie Editora).

[1] QUIGNARD, P. (1948) O nome na ponta da língua. Trad. Yolanda Vilela, Ruth Silviano Brandão. Belo Horizonte: Chão de Feira, 2018.

[2] MONTERO, R. A ridícula ideia de nunca mais te ver. Trad. Mariana Sanchez. São Paulo: Todavia, 2019.

[3] FAUSTO, Boris. O Brilho do Bronze – um diário. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

[4] BARTHES, Roland. Diário de luto. Trad. Leyla Perrone. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 23.

[5] BECKETT, Samuel. (1970) Primeiro amor. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

[6] FREUD, S. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

[7] LACAN, J. Seminário 10, 23 de janeiro. Staferla.