Por Claudio Castelo Filho

Na terceira conferência proferida em São Paulo em 1973[1], o psicanalista britânico Wilfred R. Bion chamou a atenção para a necessidade de o psicanalista considerar a percepção que um paciente possa ter de uma situação que venha a ser muito discrepante daquela comumente aceita socialmente ou estabelecida como correta. Nela menciona que Freud acreditava que um paciente seu tinha fobia de meias. Bion destaca que naquilo que Freud via como meias, a grande acuidade visual do paciente capacitava-o a perceber uma coletânea de buracos tricotados juntos. Em “Como Tornar Proveitoso Um Mal Negócio[2]” ele também chama a atenção para o problema da visão de Hannah Segal, que ficou prevalente, de que era um equívoco de seu paciente não poder tocar violino em público porque isso era se masturbar diante de uma audiência. Era necessário considerar que a percepção do paciente também é correta. Dessa forma, Bion indicava o problema do analista ter uma visão unilateral de um fenômeno, faltando a ele considerar outros vértices de abordagem. O problema dos pacientes era lhes faltar uma percepção social-ista do fenômeno, e o dos analistas de não considerar a percepção particular, narcisista, dos pacientes. Tanto pacientes quanto analistas ficavam somente com a metade da maçã e, por conseguinte, faltava-lhes uma visão binocular (narcisista e social-ista – interna/externa – sensorial/não sensorial) do que apreendiam.

No terceiro Seminário (p. 79) em Los Angeles em abril de 1967[3] ele menciona que um esquizofrênico poderia ter as potencialidades de um gênio, entretanto, carece de uma personalidade suficientemente robusta que possa conter seus dons e intuições resultando num desastre no qual nos deparamos com os destroços dessa personalidade. Em contrapartida, fenômenos psicóticos requisitariam um gênio como Freud para poder lidar com eles, transformando-os em algo criativo, como teria sido o caso do pai da psicanálise, que diante do que vislumbrou, suportou a turbulência emocional associada às suas percepções que o desnortearam e a violenta turbulência externa do grupo quando foi publicando o que verificou. Ele intuiu a realidade psíquica subjacente aos fenômenos sensorialmente apreensíveis, e transformou sua visão em psicanálise, permanecendo, contudo, razoavelmente intacto – o que faria a diferença de um gênio e de um esquizofrênico. Considero o mesmo quando me refiro a Melanie Klein e a Bion – gênios.

Sendo assim, o trabalho do analista implicaria em ele se dispor a perceber o que o seu analisando “vê” a partir da perspectiva do analisando e não tentar normatizar a percepção desse último considerando o vértice social.

Trago dois exemplos da minha clínica.

  1. Uma analisanda queixava-se de estar convicta de que seu marido tinha uma amante. Entretanto, não tinha elementos factuais para ter essa certeza. Na minha experiência com ela observei que procurava sempre apresentar-me a analisanda que imaginava que eu gostaria que ela fosse, assim como em suas associações, informava-me que tinha muito receio de que o marido soubesse o que realmente pensava, pois temia que ele a rejeitasse e, da mesma forma, esforçava-se para lhe apresentar a esposa que pensava que ele queria ter. Fiz a observação de que ela tinha razão de sentir que ele tinha outras, pois mesmo quando era “ela” que tinha relações com o marido, não era mesmo “ela”, eram as mulheres que ela imaginava que ele gostaria de ter que ela produzia para ele. Ela mesma ficava excluída olhando para a relação que o marido tinha com aquelas que ela mesma apresentava para ele. Da mesma maneira, considerei, ela também deveria se sentir muito frustrada na sua relação comigo, já que sempre estava a me apresentar alguém que imaginava que eu queria ter como paciente, esforçando-se para esconder sua pessoa real. A analisanda ficou muito impactada e deu sentido à minha observação. A constatação da analisanda, tivesse o marido, ou não, amantes de fato, era pertinente, era adequada.

Fiquei, todavia, com a impressão de que possivelmente o marido pudesse arranjar outras mulheres para se relacionar, visto que alguém que se esforça para ser o que imagina que o outro deseja acaba sendo uma espécie de sombra e não dá para uma mão apertar outra (encontro) se uma mão não fizer certa resistência à outra (não implica em ser hostil ou oposição). Como esse aspecto estava fora de minha alçada e eu não tinha tampouco qualquer acesso à sua vida fora do consultório e nem me cabe me intrometer nela, sendo que isso não tem qualquer importância real, visto que o relevante é a informação obtida na sala diretamente da observação da paciente, não entrei nesse mérito.

  1. Em outra situação, um analisando queixava-se de que suas namoradas diziam que ele nunca parecia estar realmente presente e ele, por sua vez, também não sentia que era capaz de envolver-se com elas na mesma intensidade que elas viviam a relação consigo. A despeito de se ver bem sucedido profissionalmente, sentia que lhe faltava algo essencial.

Depois de algum trabalho, no meio de suas associações durante uma sessão, ele disse: ….”na casa que tínhamos lá em São Paulo…” Eu lhe indaguei onde ele se encontrava. Ele respondeu que no consultório comigo. Eu ponderei que não, visto que meu consultório era em São Paulo e ele não estava em São Paulo. Perplexo diz: Como não ? – Você disse na casa que tínhamos LÁ em São Paulo, portanto em São Paulo é que não está. – O paciente quis argumentar que era um jeito de falar. Eu propus que ele levasse minha ponderação a sério, pois eu achava que ela iluminava muita coisa. Disse-lhe que as namoradas tinham razão de se queixar de sua não real presença, pois o que estava presente no consultório comigo não era ele, mas seu avatar, enquanto ele permanecia em algum universo distante. Ele considerava que o mundo em que eu vivo e estou é muito perigoso e com uma atmosfera potencialmente deletéria. Desse modo, ele enviava uma sonda – avatar – que tinha contato com as pessoas e comigo, enquanto que ele só tinha acesso às experiências de forma indireta, o que fazia que se sentisse sempre faltando algo essencial, que era um contato direto com a experiência, pois temia que essa fosse insuportável.

Essa observação descortinou nova perespectiva para o analisando e posteriormente seu contato comigo e com os demais, segundo seus relatos, adquiriu outra qualidade à medida que se viu mais capaz de suportar maior contato com suas experiências emocionais.

Dessa forma, destaco a importância do analista focar sua atenção na realidade psíquica não sensorial, que não pode ser alcançada por meio dos órgãos dos sentidos, mas que pode ser intuída por meio daquilo que se pode observar com os sentidos (o que é imprescindível). Faço um paralelo com um documentário que vi no Planetário do Frost Museum of Science de Miami sobre a busca da Matéria Escura. A suposta matéria escura foi intuída a partir da observação da movimentação de galáxias distantes que se deslocavam em velocidades imensamente superiores às previstas pela física. Como conseqüência, suas estrelas e outras entidades que as constituem deveriam ser arremessadas no espaço, dissolvendo-as. Entretanto, elas se mantêm coesas, o que implicaria na existência dessa matéria que não é visível ou alcançável por quaisquer outros meios de mensuração sensorial atualmente disponíveis. Seria constituída de partículas que atravessam outras partículas (estaríamos o tempo todo atravessados por elas, sem serem detectadas). A despeito dessa invisibilidade e aparente imaterialidade, suas massas são decisivas para o modo como funciona o universo.

Para se alcançar a realidade psíquica não sensorial, Bion propôs a disciplina de afastamento de memórias e desejos[4], de maneira a que nossas mentes possam estar suficientemente transparentes e abertas para captá-la quando ela se manifesta. Afastar memórias de sessões passadas, de eventos e teorias que “explicariam” o momento presente, o desejo de ser um bom analista, de curar ou fazer o bem para o paciente, de que a sessão acabe, das férias que serão vividas ou que já foram, e qualquer outro movimento que tente aplacar a ignorância do analista ou a angústia que experimentar mobilizada pelo que se passa diante dele junto com o analisando. O analista teria de desenvolver sua capacidade negativa, termo emprestado de Keats, para suportar sua ignorância e o desconhecido até que algo evolua diante de si, de forma espontânea como a de um sonho que surge no meio da noite, só que acordado na sessão. Essa última situação é o que Bion chamou de evolução, que distingue da memória voluntária, deliberada e consciente, a ser evitada.

Outro paralelo a ser feito é a obra de Proust, À La Recherche Du Temps Perdu, quando o narrador descreve sua experiência diante do chá e da madeleine[5], em que faz a diferença da memória voluntária que falsifica as situações, da involuntária, que lhe permitiu a evolução do imenso romance. Outras passagens relevantes da Recherche na descrição de captação de realidades psíquicas estão nas duas vezes que o narrador vê a interpretação da Berma na peça Fedra de Racine. Na segunda[6]  dá-se conta do que não pode captar na primeira porque fora ao teatro tão cheio de expectativas do que deveria ver que não pode alcançar a “alma” da coisa, e na terceira[7], durante a noite que passa no castelo de Gilberte, que havia se tornado marquesa de Saint-Loup, em que lê as crônicas dos irmãos Goncourt sobre pessoas que conhece e verifica que aquelas que eles descrevem não tem nada a ver com as que ele tinha relações. Verifica, então, que os cronistas se atinham à realidade sensorial e tomavam ao pé da letra aquilo que os seus convivas diziam a seus respeitos e suas intenções. O narrador, contudo, não se atinha aos seus discursos, histórias contadas, e intenções declaradas. Ouvia seus conhecidos como que estando num sonho (atenção flutuante), de modo que acabava captando algo de suas psicologias profundas, a realidade psíquica não sensorial deles.

A disciplina de afastar memórias e desejos para entrar em contato com a realidade psíquica não sensorial implica na maior tolerância do analista para a esse tipo de experiência que o coloca de chofre em contato com intensas turbulências emocionais, tal como ocorreu com Freud. Essa captação também o expõe a contato com dimensões que a maioria das pessoas não tolera “experienciar”. Elas se tornam psicose quando não podem ser assimiladas e transformadas em representações. Sendo assim, é extremamente importante para que essa tarefa possa ser cumprida a contento, que o pretendente a psicanalista se submeta à mais extensa (muitos e muitos anos) e profunda análise pessoal possível.

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Claudio Castelo Filho é analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), full member da International Psychoanalitical Association (IPA), psicólogo pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutor em Psicologia Social e professor livre-docente em Psicologia Clínica pela USP. Autor do livro O processo criativo: transformação e ruptura (Casa do Psicólogo, 2004; Blucher, 2015), autor e organizador do livro Perdemos Ppessoas queridas, saúde, emprego… é possível aprender com essas experiências? (Página Um, 2010), autor e organizador do livro Sobre o feminino (Blucher, 2018). Tem artigos publicados em livros e periódicos científicos no Brasil, Itália e Estados Unidos. Também é artista plástico, pintor e desenhista, com publicações e exposições no Brasil, Alemanha e Inglaterra.

[1] Bion, W. R. (1973) – Conferências Brasileiras. Rio: Imago, 1973, p. 43-57.

[2] Bion, W. R. (1979) – Como Tornar Proveitoso um Mal Negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, ,3(4), 467-478.

[3] Aguayo & Malin (2013) – Wilfred Bion: Los Angeles Seminars and Supervision. London: Karnac.

[4] Bion, W.R. (1992). Notes on Memory and Desire. In: Cogitations. London: Karnac, p. 380-382. Publicado originalmente em 1967.

[5] Em Du côté de chez Swann.

[6] Du côté de Guermantes.

[7] Le Temps Retrouvé.