Por Ana Laura Prates*

 

Quando eu não puder pisar mais na avenida, quando as minhas pernas não puderem aguentar, levar meu corpo junto com meu samba, o meu anel de bamba entrego a quem mereça usar (Edson Conceição e Aloísio Silva)

Hoje é dia 31 de março do ano de 2020. Estamos inaugurando a segunda década do século XXI de um modo que nos toma a todos de surpresa, embora tivéssemos razões suficientes para prever que, diante das anomias que viemos acompanhando nos últimos anos, mais cedo ou mais tarde algo teria que acontecer, evidenciando a inviabilidade do modo como estávamos vivendo.

No Brasil, especialmente, fomos acompanhando, atônitos e estarrecidos, os sinais progressivos e velozes de uma tragédia anunciada. Tínhamos todos os motivos para entrar em pânico desde a eleição do Presidente Messias, pondo a nu para um mundo perplexo uma face de nossa sociedade que talvez preferíssemos não enxergar. E essa face conta com uma aliada extremamente eficaz e traiçoeira: o apagamento da memória.

Há 56 anos, na madrugada de 31 de março para 01 de abril de 1964, ocorria o golpe militar que daria início a um longo período de ditadura, com práticas sistemáticas de censura, exílio, repressão, prisões arbitrárias, torturas, mortes e muitos desaparecidos que até hoje ainda não foram reconhecidos pelo Estado. O Brasil nunca passou a limpo essa história, não puniu seus algozes, tampouco enterrou seus mortos. Em termos simbólicos, o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro representa uma terrível expressão desses tempos sombrios em que se despreza a ciência, a arte e a educação, passando por cima da história e da memória. Parecia que suas cinzas eram o cúmulo da destruição de nosso patrimônio material e imaterial, fazendo-nos pelo menos ter a esperança de que delas pudéssemos renascer. Ledo engano: o pior ainda estava por vir. Parece que nada aprendemos com a tragédia grega, que nos mostra que Édipo, fugindo de sua origem e de sua história, teve que se haver com a maldição que caiu sobre sua descendência, mas também sobre sua Polis (cidade): a peste que arruinou Tebas.

A peste, desta vez, tomou novamente a humanidade: pandemia. Empresto o trocadilho de Marcelo Freixo para dizer que, entretanto, em nosso país, além da pandemia, estamos tendo que nos haver também com o Pandemônio, ou seja, uma verdadeira legião. Não cansamos de nos perguntar como pudemos chegar até este ponto. Quem sabe a pandemia, que, até o momento, parece afetar de modo significativamente maior os mais velhos, possa nos ensinar algo a respeito. Foi estarrecedor escutar, há algumas semanas, jovens de classe alta e média dizendo que não estavam preocupados porque a “gripe” só pega em velhos. Famílias abastadas preocupadas em isolar os avós das crianças, portadoras presumidamente assintomáticas – hoje já se sabe que não é bem assim –, sem pensar que em outras configurações familiares esse isolamento é impossível. Um termômetro sintomático do lugar que o velho ocupa em nossa sociedade, na verdade um sem lugar, uma espécie de encosto oneroso na antessala da morte.

Em uma sociedade que despreza a memória, a herança simbólica e na qual os números valem mais do que vidas (como se houvesse números sem vidas), é bastante provável que vejamos novamente o espetáculo de corpos sem nome enterrados em valas comuns, tal como ocorreu na gripe espanhola. A necropolítica genocida do Pandemônio não apenas não fará nada para evitá-lo, como parece empenhar-se em patrociná-lo. Trata-se de um fenômeno exemplar no qual se nega a morte para reafirmá-la de modo sistemático. É exatamente o mesmo expediente usado para negar o golpe de 1964, de modo a reeditar suas estratégias espúrias e redimir seus protagonistas, tornando-os definitivamente vacinados contra qualquer tipo de julgamento.

Nesse ano de 2020, portanto, mais do que nunca se faz necessária a valorização da memória enquanto patrimônio imaterial de um povo, daquilo que se transmite entre gerações e nos humaniza. Muitos daqueles que viveram no corpo a violência da ditadura estão velhos e são agora desprezados como se nada mais tivessem a oferecer. Já podem morrer, eles dizem, para que a fila ande no sistema de produção. Afinal, “o Brasil não pode parar”.

Em direção contrária a essa política do esquecimento, o Movimento Vozes do Silêncio surgiu em junho de 2019, a partir da histórica caminhada ocorrida em março, com o intuito de defender a preservação da memória e resgatar a verdade sobre as violações de direitos humanos no Brasil, promover a justiça em relação aos responsáveis por essas violações, reparar material e imaterialmente as vítimas e familiares e reformar as instituições envolvidas com violência de Estado.

Hoje não poderemos sair nas ruas, mas seguiremos em vigília on-line pelos que morreram lutando contra o golpe de 1964 e pelos que continuam lutando. Estaremos ainda mais unidos nessas vozes que jamais se calarão. E mais do que nunca precisamos de nossos velhos vivos, para nos transmitirem suas memórias e experiências e nos ajudarem a elaborar o horror com o qual teremos que nos encontrar face a face para resistir. Para que possamos sair desse ciclo terrível de repetições macabras e construirmos uma sociedade em que se valorize o que se transmite entre gerações!

Texto originalmente publicado no site GGN. Link: https://jornalggn.com.br/artigos/o-que-se-transmite-entre-geracoes-por-ana-laura-prates/.

*Ana Laura Prates é psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – FCL-SP, atuando principalmente nos seguintes temas: transmissão da psicanálise, infância, sexuação, feminilidade, letra, nominação e final da análise. Pesquisadora colaboradora do LABEUB/UNICAMP.

O homem na foto acima é o pai de Prates, preso político durante a ditadura.