Por Lia Silveira *

 

O silêncio dos outros (2018) é o nome do documentário espanhol dirigido por Robert Bahar e Almudena Carracedo e tratou de registrar o empenho dos parentes das vítimas da ditadura franquista em recuperar uma história silenciada pela lei que ficou conhecida como “O esquecimento”. A proposta dessa lei era anistiar tanto os presos políticos durante o franquismo quanto os que participaram desse governo.

O Brasil também teve sua “lei do esquecimento”. Após mais de uma década de governo ditatorial marcado por perdas de direitos, torturas e execuções, o instrumento legal que viria para reparar minimamente os abusos cometidos contra aqueles que sobreviveram era a lei n° 6.683, sancionada por João Batista Figueiredo. A chamada lei da anistia viria no momento de ocaso do regime, após uma ampla mobilização social. Ocorre que, num movimento de astúcia não raro no jogo político brasileiro, o então presidente envia para aprovação um texto que favorecia também os militares e os responsáveis pelas práticas de tortura. Assim, a chamada “anistia de mão dupla” igualou duas camadas em condições completamente desiguais: de um lado cidadãos combatendo um regime político do qual discordavam e, do outro, agentes oficiais que dispunham do estado para torturar e matar.

No filme O silêncio dos outros, o argumento da sociedade espanhola foi que a lei da anistia servia para que “deixassem de lado as diferenças e se esquecesse do passado a fim de que pudessem seguir em frente”. Em psicanálise, sabemos que não funciona assim. Manter intocado o passado não permite seguir em frente. Pelo contrário, é exatamente onde reside o motor cíclico da repetição traumática que não permite avançar.

Assim, é somente visitando nossos porões sombrios e tentando bem dizê-los que podemos extrair algum saber daquilo que se repete e inventar novas formas de lidar com o real. Isso porque um sintoma, no sentido analítico, se produz exatamente a partir do retorno daquilo que não coube na palavra. Censurado, esquecido ou não escrito, algo retorna com uma força própria, impelindo à repetição. De acordo com Freud (1914), “é lícito afirmar que o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz”.

O que o mecanismo do esquecimento pode ter a ver com nossa história enquanto povo? A transposição de conceitos que se aplicam à prática clínica para a esfera da vida pública tem que guardar certa cautela. Mas aqui lanço mão de uma licença qualquer para pensar os fundamentos da nossa jovem e distraída democracia.

O dia 31 de março de 1964 marca na “página infeliz de nossa história” o conjunto de eventos que culminou com o golpe militar, depondo o presidente democraticamente eleito João Goulart. Retornar a essa data hoje, 56 anos depois, pode nos dizer muito sobre o que vivemos no presente.

O Brasil foi o único país da América Latina que encerrou uma ditadura sem julgar publicamente nem punir seus torturadores. Apenas em 2008, durante o governo Lula, o coronel Brilhante Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado em ação declaratória por sequestro e tortura. A pena foi o pagamento de indenização à família da vítima. Em 2013, com a implantação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma (ela mesma uma das torturadas no regime militar), Ustra foi convocado a depor. Durante o período em que chefiou o DOI-CODI, foram registradas ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados, de acordo com relatório elaborado pela comissão.

Poderíamos dizer que alguma coisa, enfim, foi tocada na sujeira putrefata da nossa história? Talvez. Teria esse movimento sido suficiente para induzir uma mudança na nossa relação com a verdade? Infelizmente o que daí se seguiu aponta justamente o contrário. Ustra morreu em liberdade em 2015, mas teve seu nome escrito na história recente ao ser homenageado por um insignificante deputado do baixo clero, declarando seu voto pelo impeachment da então presidenta: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”. Pelo rastro que o significante traz consigo, não podemos deixar de entrever nesse gesto a conexão macabra entre o golpe de 2016 e o de 1964: um lembrete à Dilma do preço a pagar por sua audácia em remexer os porões da ditadura.

Pensamos que com a abertura política da década de 80 poderíamos seguir em frente ignorando a história e mantendo silentes os cadáveres do cemitério de Perus. Mas, como disse Freud, o recalcado retorna e faz sintoma. Enquanto escrevo estas linhas, a televisão anuncia a tragédia de uma pandemia que começa a sobrevoar o país. Na condução da nau insensata em que nos tornamos, está o supracitado “deputado insignificante”, agora alçado ao lugar de “mito”, ícone máximo do inominável que ora ocupa a cadeira presidencial. Em se mantendo durante a tormenta, empurrará seus correligionários (para quem exclusivamente governa) rumo a um precipício de doença e morte. Se renunciar ou for deposto, nos deixa como destino ser conduzido por um general da reserva.

Marcelo Rubens Paiva, filho de um dos presos políticos desaparecidos, perguntou certa vez: por que num regime democrático estabelecido se continua a não querer falar sobre o que aconteceu? A pergunta que nos fazemos hoje é: vivemos mesmo um regime democrático estabelecido? Ou estamos descobrindo a fragilidade de uma democracia assentada na pedra que colocamos sobre o assunto? O futuro próximo dirá.

*Lia Silveira é psicanalista, professora do curso de graduação em Psicologia e do mestrado acadêmico em Cuidados Clínicos da Universidade Estadual do Ceará.