Por Viviana S. Venosa*

O tempo é uma coisa na vida dos seres falantes. Uma análise não muda o passado newtoniano, factual. O que passou, passou. Mas uma análise revela qual é o engendramento de repetição em que consiste o passado no presente e que faz com que o futuro pareça determinado. Uma análise também permite mudar a relação com esse tempo da repetição. Mas o que acontece quando um acontecimento de proporções mundiais atravessa os tempos de uma análise?

No primeiro tempo há o instante de ver. Um marco: em 26 de fevereiro, o primeiro caso soropositivo para sars-cov-2 foi confirmado no Brasil. Cada um vai ver aquele instante em seu tempo.

Visto e ouvido, começa o tempo de compreender: o mundo, como a gente o conhecia, acabou. É tempo de compreender como fazer daqui pra frente. Daqui pra frente, é preciso perguntar-se, cuidar-se, escutar-se e olhar-se, para tomar algumas decisões – e não sem as errâncias do pensamento. Um dia de cada vez, reorganizando o estado das coisas, o estar das coisas: desviando das antecipações e observando as precipitações, muita atenção às progressões, mas lembrando que nem todo progresso e nem toda ordem são desejáveis. E o instante de ver, desdobrado em tempo de compreender, causa vertigem e arremessa ao passado do só-depois, quando eu já dizia e/ou via – ainda sem poder viralizar – que: “o mundo, como a gente o conhecia, acabou”, que: “o que era não é mais, e o que é chega em outra era”. Quando Gilberto Gil canta: “o eterno deus mudança, talvez com sua lança”.

Uma forma de pensar o real encontra-se na evidência do impossível de prever o futuro: é aí que a percepção ex-siste, ou seja, naquilo que é, etimologicamente, ex-vidente, “ex” como “fora”, mais “videns”, que vem de “videre”, ou seja “ver, enxergar”. E que coisa mais misteriosa estarmos – no tempo atual – no cerne do campo da percepção e, ao mesmo tempo, lidando com o invisível a olho nu. O olho nu percebe o rei-nu: o governo da vida e da morte está nas determinações de um “ser” invisível que nem podemos considerar uma forma de vida (mas não só, voltarei a isso mais adiante). O limite do “ser”, permitindo evidenciar a ex-sistência de um tempo futuro imprevisível. Na clínica, escuto como cada um, um a um, vai se virando com Isso, de que forma o real faz ex-sistir o impossível no caso a caso. Afinal: a imprevisibilidade do futuro de uma vida não foi colocada pelo não vivo vírus. Sempre esteve aí ex-vidente, apenas não sempre evidente. Não é o vírus que é “real”. Mas é, sim, na leitura das posições de cada analisante, que o litoral topológico do impossível do real se apresenta, naquilo do que se faz caso, em uma análise. É como cada analisante fala do impacto da pandemia na sua vida que o real se desenha nas evidências daquela análise. É como esse evento, que é um pandemônio mundial, faz efeito em cada um.

Mas o tratamento é pela via do simbólico (na minha opinião, até mesmo na chamada “clínica do real”). Falasseres que somos, fala sério, não temos como sair dessa condição da fala e da linguagem. Como se diz por aí: “é o que tem pra hoje” – e esse tempo do hoje, condicional da linguagem, é um tempo do eterno. Ou, como diz Lacan em seu seminário (15/nov/77): “Isso não impede que a análise tenha consequências: ela diz alguma coisa. O que quer dizer: ‘dizer’? ‘Dizer’ tem algo a ver com o tempo. A ausência do tempo – é uma coisa que se sonha – é o que se chama ‘eternidade’. E esse sonho consiste em imaginar que se acorda e que a gente passa nosso tempo a sonhar… a gente não sonha somente quando a gente dorme… o inconsciente é exatamente a hipótese de que a gente não sonha somente quando a gente dorme.”1

A gente sonha acordado que o tempo é eterno e atemporal. Mas o condicional da linguagem, tal qual se estrutura o inconsciente, é exatamente o fato de que passado-presente-futuro coexistem em um só tempo da fala: o agora. É também o fato de que, porque falamos, conjugamos e modalizamos. E é o tratamento pela via do dizer que pode nos despertar neste momento. Criando uma secção que faz outra diferença no tempo.

Neste tempo de compreender o tempo nos tempos de corona, servindo-se do tratamento pelo simbólico, há algumas precisões: é preciso cuidar-se para cuidar dos outros e é preciso ocupar-se dos outros para cuidar de si. Ficar em casa tem a ver com não pegar, mas também com não passar, dito de outro modo: tem a ver com não morrer, mas também tem a ver com não matar. Hoje, neste tempo eterno do mais do que nunca, é tempo de compreender que a saúde é pública e política. E que, no Brasil, um sistema como o SUS é uma sustentação de tratamento. Cuidar do SUS é ter cuidado para não sobrecarregá-lo, resguardando assim a possibilidade de usá-lo. Por isso o desenho e a arquitetura de táticas e estratégias: cada vida importa. Uma a uma. Caso a caso. Fica em casa, pois ficar em casa reduz danos. Se, como dito anteriormente: “o governo da vida e da morte está nas determinações de um ‘ser’ invisível que nem podemos considerar uma forma de vida, (mas não só…)”, a ressalva nos parênteses diz sobre o anúncio de que há também as determinações via tratamento das políticas públicas de saúde. E estas, comprovadamente, foram, são e serão determinantes.

Então, há também o governo estatal, que, neste tempo, está se opondo à vida. Clama por salvar a bolsa. E, em um twist nos valores, põe o cheque assinado – e eu equivoco “assassino” –, que põe vidas em cheque. O governo acéfalo insiste em não querer saber nada disso. Mas, desde Freud, sabemos que a vida não se restringe mais ao campo do puramente biológico, portanto, saímos do binário vida & morte e sabemos que, engendrada na vida, há a morbidez. E o acéfalo faz o que com isso? Nega e diz “agir em nome de salvaguardar a vida”, mas acaba atuando a morbidez em seus decretos. Estar advertido por Freud da morbidez engendrada na vida permite afirmar a vida e a sua morbidez, evitando assim a contradição de atuar a morbidez tendo como consequência levar a vida à morte. Não querer saber nada sobre as consequências destes atos é, em si, inconsequente.

Estes tempos exigem, ao contrário e por consequência, celebrar a vida, mas não de maneira ingênua, alienada e jubilatória. Celebrar a vida quer dizer que todas as vidas importam e que morrer por decreto decrépito é perverso. Vidas célebres em cada recôndito deste estado de mundo. Nem uma a menos. Ou, ao menos, usemos um paraquedas de vidas para que as quedas na vida possam nos sustentar, para que nosso corpse não vire carniça. O SUS é nosso paraquedas. Já que o outrora paraquedista nos conduz direto e reto para uma queda fatal no precipício. E o que esse coletivo tem a ver com as análises caso a caso? Ora, isso também se embrenha no campo das análises, na medida em que mais e mais narrativas sobre pessoas doentes de covid-19 surgem – sejam sobre parentes e amigos dos analisantes, sejam dos próprios analisantes, sejam dos analistas. E histórias de corpos mortos se anunciam dia a dia. Afinal, a leitura lógica em uma análise, apesar de prescindir do campo semântico, não se faz sem as narrativas. Nem tampouco sem o campo do sentido, somente e especialmente quando aí enodados também estão o non-sens (não sentido), o hors-sens (fora-de-sentido) e o absens (ab-senso). É nesse campo estendido que se dá o tempo do presente e da presença. Ano-luz é uma medida de distância, e a distância não se confunde com o espaço newtoniano. Análises online estão acontecendo para que o dispositivo, que é o discurso de analista, se dê à altura do nosso tempo. Ato à risca, para não correr o risco de se adiantar e passar do ponto e se atrasar. Para que a psicanálise seja possível, mais ainda!

Portanto, o imaginário da antiga solidez está ruindo. E quem não nega, percebe. Vimos no primeiro tempo que o tempo em que consistia o mundo como havíamos conhecido acabou. O prejuízo está dado, e há que se fazer algo para inventar uma nova repetição consistente que possa estar articulada com o tempo do aqui-e-agora da contingência. Aguardo, impaciente e analisante, qual será a nova amarração que vai engendrar o novo mundo. O que ele carregará de herança do antigo mundo? Haverá bastante trabalho para pegar aquilo que herdamos e fazer disso próprio. É impossível prever o futuro, mas é possível querer o possível. Qual será o tempo futuro do agora possível, na cena desse mundo?

Ainda vai tempo-tempo-tempo-tempo para alcançarmos a asserção do momento de concluir, encontrarmos uma saída. Nessas horas precisas, sempre me lembro de um dizer de Saramago: “Não tenha pressa. Mas não perca tempo”.

* Viviana S. Venosa oferece psicanálise há mais de duas décadas para aqueles que se dispõem a analisar-se. Sua formação universitária se deu no Instituto de Psicologia da USP, pelo qual obteve os títulos de graduação e mestrado, com a dissertação “O Ato de Cortar-se: uma investigação psicanalítica”; e fez aprimoramento no ambulatório de transtornos alimentares Proata-EPM Unifesp, onde também foi membro da equipe por oito anos. O percurso das formações em psicanálise passa pelo Depto de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e segue, hoje, no Fórum do Campo Lacaniano SP. Também é psicanalista convidada para apresentar nos seminários clínicos do Centro de Estudos Psicanalíticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – LACAN, J. (1977-78) O seminário, livro 25 – O momento de concluir. Versão Staferla, tradução livre. Acesso em 26/03/2020. Disponível em: http://staferla.free.fr/S25/S25.pdfc.