Por Fernanda Zacharewicz*

Hoje completam-se oitenta anos da morte de Freud. Poderia dedicar este espaço a escrever sobre o início da vida profissional de Sigmund Freud, seu primeiro apego pelo cientificismo, a escuta das histéricas e daí seguir enumerando suas múltiplas e importantíssimas contribuições sobre as relações de mulheres e homens com o desejo. Mas não vou seguir por aí. O que me inquietou logo que lembrei que completaríamos oito décadas de sua morte foi pensar na relação entre psicanálise, mulheres e os tempos atuais.

Tomemos, para começar, a paciente que Freud nomeou Anna O. Eram vários seus sintomas: cegueira, anorexia, mutismo, depois a comunicação somente em outro idioma que não o dela, ausências… o ponto que Freud destacou no texto que escreveu com Breuer foi que ela foi capaz de nomear esse processo como talking cure, cura pela fala. Freud deixou falar e ouviu o que precisava dessas mulheres. Da hipnose à pressão na testa, chegando à associação livre, foram muitíssimas horas de atendimento. Mulheres que ele já tinha atendido no hospital Salpêtrière, em Paris, com Chacot, que, por sua vez, examinou, exibiu a notáveis, fotografou cada um desses corpos em sofrimento com afinco científico.

Freud, voltando a Viena, fez diferente. Deu-nos a privacidade e o sigilo para que a fala de cada uma pudesse fluir e, a partir disso, ir mais além. Só para dar um exemplo das possibilidades desse mais além, podemos retomar Anna O., depois reconhecida como Bertha Pappenheim. Finalizado seu tratamento, ela foi assistente social, escritora, líder de movimento feminista. Pois é, ela aprendeu a falar de seus desejos e soube como fazer com eles.

Quais as consequências de as mulheres serem ouvidas e irem mais além? No fim do século XIX, início do século XX, isso significava ir além da casa e do projeto de família burguesa. Significava ousar participar da vida pública. É claro que um pouco mais de um século depois da invenção da psicanálise (podemos considerar como marco a publicação de A interpretação dos sonhos, em 1900), nós, mulheres, conquistamos muito. Ocupamos altos cargos nos principais governos e empresas multinacionais, podemos ir e vir livremente, sem a necessidade de ter um homem responsável por nós e que nos dê a sua autorização.

Trabalhamos, estudamos, votamos, somos eleitas. Respiramos outros ares, mas estamos sufocando novamente a cada dia, quando alguma de nós é alvo de piadas sexistas que nos rebaixam a objeto sexual, quando um parlamentar saúda o torturador de nossa presidenta e quando, ainda por cima, um país o elege presidente a seguir. Sufocamos, cegamos, enlouquecemos quando as taxas de feminicídio crescem e sua amiga, ameaçada por um namorado, vai à delegacia e o delegado nega-se a solicitar medida protetiva. Passamos a limitar nossos horários, a aumentar o cumprimento de nossas saias, a evitar o decote que mostra nosso colo. Nos cobrimos, nos fechamos, voltamos ao bairro, à casa, ao quarto, à criação dos filhos.

Freud morreu. E não foi ontem, faz oitenta anos. Somos nós, as mulheres que foram diretamente tocadas pelo discurso da psicanálise, responsáveis por manter aberta a possibilidade de escuta, a possibilidade de o sujeito construir sua própria história e ser responsável por seu desejo.

Entre psicanalistas, a grande maioria é de mulheres. E onde estão elas? Quais os lugares que elas ocupam em suas próprias instituições psicanalíticas? Qual o lugar que ocupam na pólis? Quanto temos nos empenhado em sair da casa, sair da segurança de nossos consultórios ou escolas para o debate e para a escuta do novo? Quantas de nós escrevem e publicam seus escritos? Quantas de nós estamos dispostas a escutar o que nosso tempo apresenta como desafio? Quantas de nós podemos realmente escutar o desejo do sujeito desde suas diferentes identidades sexuais? Depois da imensa quebra freudiana de paradigmas, voltamos a construir muros?

Muito já andamos, mas não há garantias. Há que seguir escutando, desconstruindo preconceitos, abrindo-se ao novo, ao que cada paciente diz ao adentrar o consultório. E estar lá, não com a certeza do já sabido, mas com o saber de quem sabe que, a cada vez, é o inédito do desejo de cada analisante que se apresenta em nosso divã. Façamos, pois, nesses oitenta anos da morte de Freud, a psicanálise viva, atenta aos desafios de nosso tempo.

* Psicanalista, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e mestre em Gerontologia Social pela mesma instituição, é membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e fundadora da Aller Editora.