Por Miriam Debieux Rosa*

 

Que tempos são esses em que passado e presente se misturam, que ameaças de tempos longínquos nos assombram, nos arrancando do que, bem ou mal, era a nossa vida e deixando em suspenso nosso futuro?

Estamos em luto, mais uma vez, pela longa ditadura implantada em 1964 e formalmente encerrada em 1985. Luto pelos perseguidos, torturados e mortos e também pela anistia aplicada aos algozes e torturadores – os crimes contra a humanidade não foram apurados, punidos, registrados como história para não se repetir. Luto porque não podemos celebrar o seu fim, dado que os restos da ditadura ficaram presentes e vivos, parcialmente ocultados e indiretamente aprovados, nas práticas da política e da polícia, no modo que se governa grande parte da população pobre e negra das periferias – nossa democracia não se estende aos rincões do país.

Tal ocultação parcial se rompeu na crise e polarização política desencadeada desde o golpe de Dilma Rousseff e a eleição do atual presidente. Para além das críticas às democracias representativas, emergiu a face retrógrada presente na sociedade brasileira, que pretende manter seus privilégios e tolera, quando não elogia, a ditadura e seus métodos de perseguição e tortura, o patriarcado e controle das mulheres e da sexualidade, e as práticas de opressão e racismos semelhantes às da escravatura.

Eis que nos vemos às voltas com um salvador da pátria, pai/patrão/monarca totalitário que veio para, mais uma vez na nossa história, limpar o país da corrupção dos outros, enquanto seu próprio grupo a pratica, que promete limpar os pecados do mundo, que abole as ciências e o pensamento histórico e crítico, atacando as escolas, as universidades, os alunos, professores, pesquisadores, as maiorias, as minorias, que despreza e desconhece os saberes e potencialidades da comunidade, as questões das minorias, do meio ambiente, a história, as análises sociais e políticas.

Ele orquestra a gestão política do país sustentando a lógica da guerra, em detrimento da concepção de uma governança para e com a sociedade, não levando em conta o reconhecimento recíproco e os direitos de liberdade e igualdade. A lógica da guerra substitui a alteridade pelo estrangeiro-inimigo interno, responsabilizado pelos males sociais. A lógica paranoica casa-se com o gozo narcísico e impõe que não haja partilha dos bens comuns, que sejam privatizados. Em nome do bem, sob a capa do ressentimento e autorizados a odiar, esteira libidinal primária para resolver os problemas, elimina o inimigo – aqueles que ousam pensar e desejar novos mundos e amores – e o mal, equívoco que torna grande parte da população alvo de intolerâncias, racismos e violências.

Nesse contexto, chegamos ao covid-19, que nos aproxima aos tempos da peste que se propaga rapidamente e diante da qual não há remédio. A defesa possível para minorar a destruição será isolar-se em condições específicas de higiene, incrementar serviços de saúde, promover formas de sustento para todos que precisarem ficar fora do trabalho. O país “descobre” que parte imensa da população não tem água encanada e esgoto, que mora em condições precárias e não tem meios para atender as medidas de proteção. Descobre seu velho e fraco governante, que busca tirar proveito da pandemia destacando que vai matar apenas os velhos, pobres e doentes, os descartáveis.

Isso posto, mais além do lamento, neste 31 de março que nos lembra do que vivemos na ditadura, temos oportunidade de levar a cabo a tarefa de retomar a concepção de cidadania ou, como nomeia Rancière, a noção de um povo, com consensos e dissensos, mas em uma subjetivação coletiva em que todas as pessoas, juntas, construam um projeto de país. Almejamos que aproveitemos a oportunidade para descartar os déspotas e, diante do terrível, possamos enfim, nos tornar uma nação para todos.

*Miriam Debieux Rosa é psicanalista, professora titular de pós-graduação em Psicologia Clínica da USP.