Por Suely Aires*

 

Por que lembrar do dia 31 de março de 1964, tantos anos depois? Por que não esquecer de uma vez por todas o dia do golpe militar que inaugurou um dos períodos mais terríveis da história brasileira? As razões para que essa data se imponha a cada um de nós e insista entre memória e esquecimento são várias, mas uma delas, a meu ver, merece ser destacada: porque isso retorna em sua dimensão traumática. Não houve uma inscrição simbólica e, portanto, histórica que permitisse uma saída do impasse produzido entre lei e anomia, que viesse limitar a violência instituída por meio de atos – institucionais ou não, publicados no diário oficial ou rasurados nas anotações do DOI-CODI –, que evitasse uma busca por conciliar o inconciliável. Uma proposta de esquecimento e apaziguamento não se coaduna com uma proposta de resgate da memória e direito à verdade. Não há paz possível diante de um silêncio que se faz cúmplice da violência.

A anistia, inicialmente proposta em 1979 por meio de lei federal, se tornou paulatinamente ampla, geral e irrestrita por sucessivos adendos à lei, os quais buscaram constituir um pacto político: absolvição geral, indiferenciando vítima e algoz, e consequente silêncio. A ausência de palavra e de testemunho sobre os crimes, incluindo as práticas de tortura e o assassinato e ocultação dos corpos de desaparecidos políticos, impossibilitou nomear de forma singularizada os atos cometidos e as responsabilidades, sejam elas individuais ou do Estado. A desresponsabilização produzida teve seus efeitos no tecido social, os quais vigoram até hoje. Porque houve ruptura e trauma, porque houve silêncio e impedimento de circulação da palavra, porque houve um seguir adiante sem olhar para trás, produziu-se o retorno do que não pode ser dito, retorno em ato.

Os restos da ditadura continuam entre nós, não nomeados, sem juízo formal de valor ou de existência. Essa não inscrição permite sua permanência e revivescência a cada nova prática de violência e de tortura presentes nas práticas de Estado. Cabe relembrar que o Brasil talvez seja o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelo Estado, em seu braço armado, aumentou depois do fim da ditadura. E tem aumentado, ano após ano, a despeito das diversas denúncias e tentativas de responsabilização por parte de associações de direitos humanos e da sociedade civil. Acreditava-se que, como resultado da conciliação, do esquecimento e do perdão, uma diminuição dos crimes aconteceria. Mas essa expectativa – ingênua, poderíamos dizer – desconsidera a repetição continuada do que não foi inscrito.

Isso talvez traga algumas respostas – em sua pluralidade – para a questão inicialmente feita: por que lembrar do dia 31 de março de 1964, tantos anos depois? Porque o que não foi dito precisa ser formulado de uma maneira que permita seguir, sem esquecer, e que permita ir adiante. Para que, sem desconsiderar o peso histórico e singular do que foi vivido, façamos dessa ferida no campo social uma cicatriz e uma marca de mudança. Para que não acordemos no dia primeiro de abril com a mentira enunciada de que não houve golpe, de que não houve tortura e de que a ditadura foi um período sem violência no Brasil. Para que o testemunho de cada um de nós possa dar corpo à invenção e reinvenção do humano, em sua dimensão política, ética e afetiva. Para que haja um outro amanhã.

Salvador-BA, 2020,

em tempos de coronavírus e de aposta no desejo

*Suely Aires é psicanalista, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (IMS-UFBA).