Por Marcelo Bueno*

Nenhuma temporalidade é tão mutável numa análise quanto o passado. Ao contrário do que comumente se supõe, o passado não é definitivo para o sujeito. Em verdade, o passado não lhe pode ser outra coisa além de linguagem. Fora desta, a própria experiência temporal lhe é vedada, pois a estrutura da linguagem é o leito do rio do tempo para o ser falante.

A antiquíssima metáfora do rio como imagem do tempo, indissociável de Heráclito graças ao célebre fragmento “Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”[1], foi pensada ao longo dos milênios com o fluxo desse rio tendo origem num passado primordial e correndo rumo ao presente. Dentre as poucas exceções a essa visão da direção do tempo, o filósofo inglês F. H. Bradley argumenta que a sua orientação também poderia se dar do futuro para o presente. Para Bradley, a direção do tempo e a distinção entre passado e futuro dependem inteiramente de nossa experiência[2].

Na cadeia significante, o sentido produz-se de modo retroativo, ou seja, o sentido dos significantes que integram uma dada sequência é fundado quando esta termina, posto que a compreensão de algo comunicado advém de um movimento orientado do seu final para o seu início. Entenda-se: do presente para o passado, movimento onde a seta do tempo é semelhante à conjecturada por Bradley. No mais, é a memória que possibilita tal movimento, bem como são a sua instabilidade, as suas lacunas e a fantasia aí participante o que dão forma a esse passado.

Consoante a isso, a concepção freudiana de causalidade psíquica, o Nachträglich, só-depois[3], refere-se a uma ressubjetivação e reestruturação do passado ocasionadas por experiências no presente. No entanto, Freud aponta que não é toda e qualquer vivência que é remanejada, mas apenas aquilo que deveria e não foi significado adequadamente, como é o caso do trauma e os dois tempos necessários para a sua instauração[4].

Convém lembrar que foi Lacan o responsável por dar status conceitual ao Nachträglich. Em seu retorno a Freud – esforço que na história da psicanálise talvez também tenha o caráter de um só-depois –, o termo recebeu maior importância, sendo fundamental, para além de uma temporalidade inerente à articulação significante, igualmente para uma proposição da análise na qual opera um tempo para compreender. O próprio sujeito lacaniano é anacrônico, dado que, efeito e prisioneiro da ligação de um significante a outro significante, só é produzido retroativamente[5].

O fato de na análise o sujeito voltar-se ao seu passado e ressignificá-lo opõe-se ao interdito de não olhar para trás que encontramos em diversas narrativas míticas, como a história de Orfeu e Eurídice, na qual é mais bem desenvolvido. Inconsolável com a morte da ninfa Eurídice, sua esposa, devido a uma picada de serpente, Orfeu desce aos Infernos para buscá-la. Com a música de sua lira, produz encantamento em monstros e deuses e lhe é concedido retornar com a amada, mas sob a condição de seguir à sua frente e em nenhuma hipótese olhar para trás. Quando estão quase alcançando a luz, ele é tomado pela dúvida de se realmente Eurídice o segue. Volta-se para se certificar, e ela se esvanece, morrendo pela segunda vez. A Orfeu, então, não é mais permitido o acesso ao mundo infernal[6].

Tradicionalmente, interpreta-se o olhar desditoso de Orfeu como voltado para o passado. Junito Brandão afirma que o insucesso do poeta nos Infernos teria como causa seu apego à matéria, simbolizada por Eurídice, e que sua transgressão de um tabu concernente às direções também implicaria um retorno às harmatíai, que são as faltas, os erros, e numa renúncia ao espírito e à verdade[7]. Todavia, com a psicanálise, esse interdito pode se prestar a uma ilustração mítica da resistência do neurótico em rememorar conscientemente o que foi esquecido e recalcado, embora o inconsciente insista em sua recordação.

O tempo do neurótico resiste a retroceder ao passado infantil, paralisando-o frente ao futuro e promovendo o seu desencontro com o desejo. Procura em vão sincronizar-se com o tempo cronológico, que é o tempo do Outro, só admitindo a cristalização dos acontecimentos e rejeitando o tempo da lógica da linguagem, a corrente do rio reverso de uma análise – águas de múltiplas e quase inesgotáveis ressignificações.

Numa das versões da história de Orfeu, Caronte, o barqueiro responsável pela travessia das almas de uma margem a outra do Aqueronte, rio que separa o mundo dos vivos do dos mortos, é quem o impede de retornar aos Infernos[8]. Não vencendo os céus, mas movendo o Aqueronte, o analista também se faz barqueiro dos Infernos. Mais solícito, porém, conduz as almas em direção ao passado, àquele que acontece só-depois.

*Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano.

IMAGEM: CHAGALL, Marc. O mito de Orfeu. Óleo sobre tela, 97x146cm, 1977.

[1] HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002, p. 205.

[2] BRADLEY, F. H. Appearance and reality: a metaphysical essay. 2. ed. 6. reimpr. corr. London: George Allen & Unwin LTD., 1916, p. 214.

[3] Versão de M. D. Magno para après-coup, neologismo com o qual Lacan traduz Nachträglich.

[4] FREUD, S. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”). In: FREUD, S. Obras completas, v. 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 51-54.

[5] LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 819-820.

[6] GRIMAL, P. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. 8. ed. Paris: PUF, 1986, p. 332-333.

[7] BRANDÃO, J. S. Mitologia grega, v. 2.  Petrópolis: Vozes, 1987, p. 143-145.

[8] GRIMAL, P. Op. cit., p. 333.