* Por Isabel Tatit e Claudia Simionato

 

As teorias sobre solidão partem da diferença entre solitude (simplesmente o fato de estar só) e o sentimento de solidão (sofrimento subjetivo). O desamparo da solidão é expressão da dificuldade de lidar com a falta de outros, mas também da dificuldade nos descompassos nas relações em geral. Já a solitude diz respeito à possibilidade de cada um se separar dos grupos, dos ideais, da ideia de complementaridade e, então, inventar uma forma singular de estar no mundo…  inevitavelmente, com os outros. Nesse sentido, podemos falar também em uma solidão estrutural, comum a todos nós. Trata-se do vazio constitutivo que viabiliza a margem de singularidade que nos cabe.

Em tempos de quarentena, estamos mesmo isolados, como costumam dizer? As definições de solitude, solidão, autoisolamento, segregação e quarentena foram atualizadas. Mais além da solitude e da solidão (estrutural ou subjetivada como sofrimento), podemos diferenciar autoisolamento de segregação. Essa quarentena nos parece um mix entre ambos: se, antes, apenas a solidão era característica comum da estrutura do sujeito, agora, isolamento e segregação passaram a ser destino comum de (quase) todos nós.

Falamos em segregação quando um agente externo exclui. Um vírus pode ser o agente externo que exige que fiquemos em casa, segregando-nos do espaço público e lançando-nos numa convivência doméstica intensa. De fato, na maioria das vezes, estamos confinados no ambiente familiar. Mas estamos também autoisolados, no sentido de que escolhemos nos proteger. Cuidar de si e cuidar dos outros nunca estiveram tão próximos. Assim, segregação e autoisolamento também se aproximam por uma questão ética.

O ser humano é gregário por excelência, ainda que sempre em conflito com suas relações. Não somos autossuficientes, precisamos nos abastecer com coisas do mundo; portanto, segregação e isolamento são quase sempre parciais.  Nesse sentido, ainda que lavemos as mãos obsessivamente, usemos máscaras, desinfetemos todas as compras, troquemos de roupa ao chegar em casa, deixemos os sapatos para fora, tiremos os tapetes e espirremos cloro em tudo: não existe garantia de risco zero de contaminação.

 

E quando as quarentenas se juntam?

 

Esse cenário nos fez retomar a temática do puerpério em suas dimensões subjetivas e sociais. É muito comum quando se ganha um bebê escutar a menção ao provérbio africano de que “é preciso toda uma aldeia pra cuidar de uma criança”. Se, em condições ditas normais, esse adágio já circula não à toa, imagine em uma situação de isolamento pela chegada de um bebê somada à quarentena para evitar a disseminação do novo coronavírus? Muitas são as mães que estão passando por isso agora: algumas com bebês recém-nascidos, outras, com bebês de alguns meses, que ensaiavam poder começar a sair da quarentena (que também não dura só 40 dias), ou até com bebês maiores, porque este tempo do “voltar a circular” – o que é que volta a circular? – não é um tempo apenas cronológico.

Demora um tanto, em muitos casos, para uma mãe se sentir confortável para circular com seu bebê. Essa demora é justificada pelo discurso dos pediatras, das avós, pelo calendário das vacinas, claro, mas também fica a questão sempre presente de “mas vamos sair desse ambiente protegido?; quanto sou capaz de proteger esse bebê?”; “como garantir que nada aconteça a ele?” – questões perfeitamente simultâneas com o desejo por essa saída. E não é essa também uma pergunta que assola a muitos agora: como e quando voltaremos a nos sentir protegidos e, portanto, autorizados a circular? Quantos esse vírus pode contaminar? E aí é o ponto com que, inevitavelmente, todos – mães, não mães e não toda mães – precisam lidar: embora deseje, eu não posso circular.

A impossibilidade é um tema recorrente no período do puerpério. Durante a gestação, algum isolamento já se anuncia: embora cada gestação seja uma, é comum que a mulher sinta cansaço, sono, desconfortos físicos que já a impossibilitem de seguir sua rotina como era antes. Além disso, a suposta futura mudança de papel – por exemplo, de uma que era “só” amiga, de uma que era “só” tia, de uma que era “só” companheira, entre outros, para agora uma que é também mãe – já pode trazer abalos em vínculos, que farão a gestante precisar se localizar na nova cena, ainda em construção. Essas mudanças de papéis que a mulher já precisa elaborar durante a gestação – enquanto, ao mesmo tempo, seu corpo está a mil -, de alguma forma, fazem o tema da solidão/isolamento aí já se anunciar.

Depois, com a chegada do bebê, muito do que acontece, ao contrário do que se propaga socialmente, é um desencontro. “A” mãe é idealizada e predicada de antemão como aquela que vai cuidar, nutrir, amparar aquele bebê, não importa o que (lhe) aconteça – e muitas vezes essas ações vêm condensadas em um verbo só: o verbo “amar”. O “só”, do sentir-se sozinha com um bebê, pode ir dando lugar a um somente: “só eu não sou capaz” – o que funda o grupo mítico das “capazes”. Soma-se a isso um esvaziamento narcísico, que pode ser vivido com bastante sofrimento, mais acentuado ainda se era esperada uma “plenitude”  no encontro com o bebê (a ponto de algumas mulheres fazerem desse sofrimento um lugar permanente), que, de fato, é muito sofrido quando todo-o-cuidado de um bebê fica sob única responsabilidade de uma pessoa, pressuposta – algumas topam esse lugar, outras não – como aquela que vai ser “toda-mãe”. Cuidar de um bebê é algo muito intenso para apenas um(a) se responsabilizar. É um engano achar também que, quando uma mãe cuida de um bebê, ao fazê-lo, ela já esteja cuidando de si.

“Serei tão só e somente eu aquela a ser suficiente?”. Não é possível estar só no cuidado de um bebê. O campo do possível pode ser lido como restrição ou campo das possibilidades. Ao entrar em contato com o outro, com outras mães, com outros que se pre-ocupem e se ocupem desse cuidado também do bebê, pode-se passar do “ eu não consigo” para o “, eu não consigo”. E, aqui, talvez o provérbio de que é preciso toda uma aldeia para criar uma criança possa ser lido como: é preciso solidariedade no cuidar. Uma solidariedade que torne possível fraturar a ideia de cuidado onipotente, sem faltas e, portanto, sempre insuficiente. Cuidar do outro, como está também escancarado nesta quarentena, não pode ser desvinculado de um cuidar de si. Não sem o outro.

O autoisolamento domiciliar, esse tempo suspenso sem dia para acabar, o imperativo “fique em casa”, a necessidade de se resguardar para resguardar um ser mais frágil, são assuntos conhecidos das mães. A quarentena provocada pelo novo coronavírus recupera a sensação do pós-parto, ou até da gravidez, de uma vida paralela, na qual as lógicas do trabalho, do dinheiro, do espaço e do tempo caem por terra. É um momento em que precisamos muito dos outros, mas estamos recolhidos, circulando menos. Questões de sobrevivência ganham prioridade, e a saúde mental fica em segundo plano, mas logo é reconsiderada, pois começamos a surtar, explodir, nos exaurir, adoecer…

Se há uma diferença importante entre a quarentena provocada pelo vírus e o puerpério, é que, no primeiro caso, a quarentena é de todos. Talvez aquele sentimento de “estou aqui sozinha, parada, enquanto o mundo ferve lá fora” não se apresente. O mundo também parou. Mas ainda não sabemos. Precisamos ouvir as puérperas em tempos de coronavírus.

No dicionário Houaiss, puerpério é o período que decorre desde o parto até que os órgãos genitais e o estado geral da mulher voltem às condições anteriores à gestação. No dia a dia, esse período também é chamado de resguardo ou quarentena. Etimologicamente, a palavra diz respeito ao parto, às dores do parto. Não precisa ser mãe para desconfiar que é errado imaginar que algo volte “às condições anteriores à gestação”, muito menos num tempo tão limitado, e que isso valha para todas as mulheres. E esse saber materno nos inspira para a reabertura pós-coronavírus. Muita coisa vai mudar, não adianta esperarmos ansiosamente pelo “retorno do funcionamento normal das coisas”. Não deveríamos, também, tomar a quarentena como pura perda de tempo ou parada do tempo. “Quando tudo acabar”, a pergunta “o que fiz de minha quarentena?” irá retornar. Assim como o puerpério não pode ser circunscrito à experiência do parto, tampouco aos quarenta dias pós-parto, quais serão os efeitos subjetivos após a quarentena viral? Como mães, sabemos que o sofrimento não se encerra com o fim da reclusão.

O processo de subjetivação da maternidade, ou ainda os tropeços e as invenções singulares de cada mãe na relação com seu filho, acontece enquanto a mulher está totalmente absorvida pelas demandas concretas e imperativas do recém-nascido. O tempo do chamado puerpério é um eterno presente. É comum os adultos que cuidam do bebê terem dificuldade de fazer planos. Quem dita o tempo é um ser ainda não ritmado pela cultura, em seu corpo mal está impresso o que é dia, o que é noite.

Atravessamos nosso primeiro mês da quarentena viral. Ouvimos de muitos e experimentamos uma vida de eternos domingos. Não porque trabalhamos pouco, mas porque às vezes estamos de pijama o dia todo, num ritmo diferente, outras vezes com os horários mais flexíveis e, principalmente, em casa, com a nossa família. As demandas das novas logísticas (escola virtual, crianças em casa, home office, serviços domésticos) também atropelaram o trabalho subjetivo relativo ao acontecimento da pandemia. Quanto tempo demora para se elaborar essa fissura em nossa ilusão de segurança da saúde física? Como lidar com o medo de ser contagiado, de morrer, perder familiares ou, até mesmo, com notícias tais como “morrem a cada dia mais de mil pessoas em algum país”?

No puerpério, as antecipações da vida cotidiana, típicas da neurose, podem abrandar. Muitos pais abrem mão, de fato, de ficar criando expectativas ou frustram-se menos quando o esperado não ocorre. Não adianta prometer que vai à festa sem antes saber como será a noite com o bebê. Diversos ideais antes sustentados pelos pais são atropelados pelo presente, carregado dos limites do que é possível para aqueles adultos e para aquele bebê, naquela determinada circunstância. A contingência, portanto, ganha importância: “eu queria que fosse parto normal, mas o bebê começou a entrar em sofrimento, fazer o quê?”. Com maior ou menor sofrimento psíquico, a depender do grau de apego aos ideais anteriores, a parentalidade impõe o tempo presente, o status de contingência e os limites do possível.

Embora cuidar de um filho seja, entre outras coisas, criar alguém para o futuro, tornar-se mãe ou pai de um recém-nascido puxa a experiência para a concretude das tarefas diárias ligadas à sobrevivência física. Embora saibamos que tal sobrevivência diz respeito ao investimento libidinal dos pais, não podemos ignorar o quanto isso envolve uma dimensão bem pragmática: ir ao supermercado, farmácia, dar banho, trocar fralda, amamentar, fazer dormir, limpar a casa. Um recém-nascido produz uma demanda enorme de tarefas que muitas vezes impede ou prejudica a elaboração, abstração, construção e reflexão pelos pais do acontecimento do nascimento do filho. O bordão temporal dos Alcoólicos Anônimos parece servir bem aos contextos da puérpera e dos isolados da quarentena viral: um dia de cada vez. Viver o presente já é difícil o suficiente. O bordão da quarentena atual passa pelo “saia somente para o essencial: mercado, farmácia e hospital”. A vida dos pais recentes não escapa muito disso.

O maior sinal de que as demandas sufocantes do presente exaurem os pais é que o mantra do “puerpério” é “calma, vai passar”. Esse mantra se faz necessário numa tentativa (desesperada) de incutir um (belo) futuro num momento em que (quase) só há presente. É como se, ao dizerem a si mesmas “vai passar”, as mães pudessem se distanciar um pouco desse presente tão maçante e pular para um período melhor no futuro. É, por certo, uma forma de negação desse presente, uma defesa diante dos árduos trabalhos psíquico e braçal envolvidos no cuidado com o bebê. Trata-se de um recurso discursivo para a mãe tomar fôlego, como quem precisa dar um último gás para terminar uma corrida. Só que, na melhor das hipóteses, embora a corrida siga novos trajetos, ela não termina, ao menos por uns bons anos.

A escuta clínica nos faz concluir que não há, necessariamente, superação, estabilidade e harmonia como consequência imediata do acontecimento “chegada do filho”. Muitas vezes há desencontro. Desencontro com um Outro consistente e suas significações já prontas. É recorrente ouvir de mulheres que não imaginavam como seria o sono ou o enjoo na gravidez: “Foi completamente diferente, eu vomitava, mas não era bem enjoo, eu ficava deitada, mas não era bem sono”. A maternidade é uma experiência radical de diferença, incompreensão e limite da linguagem. O repertório construído diversas vezes não dá conta do que acontece no corpo e no psiquismo. E não é que “vai passar” tem se tornado também um mantra em tempos de coronavírus? Estamos diante, novamente, da tentativa de desacontecimentalização do momento que vivemos? Ou trata-se da estratégia de sobrevivência psíquica possível, diante do tormento de não saber quanto tempo essa suspensão vai durar?

A proliferação das lives (vídeos ao vivo) na quarentena soa como essa convocação excessiva do tempo presente: assista agora, viva o presente comigo agora, ouça o que tenho pra dizer agora… As lives têm se apresentado como as demandas incessantes e infinitas do bebê recém-nascido, que convoca o tempo todo nossa assistência, ora para seguir vivo, ora porque a linguagem está em pleno processo de marcar o ritmo, as pausas, a distância entre o apelo e a resposta, entre o eu e o outro. Que bom que, no caso das lives, também podemos não assistir, e o outro continuará vivo. Assim esperamos. A exaustão do corpo diante de tantas atividades braçais e a estafa mental produzida pela quantidade de recomendações também unem as duas quarentenas. Lavar as mãos e os produtos do supermercado, passar cloro nos sapatos, não usar máscara se não tiver sintomas, usar máscaras todos a partir de agora – são tarefas que nos exaurem assim como trocar fraldas, dar banho, fazer comida, fazer dormir, amamentar etc. Trata-se de uma enxurrada de ações num corpo insone, numa subjetividade em transformação profunda e num contexto de suspensão e crise.

Tendo como base a experiência do puerpério, entendemos que a quarentena, para além do resguardo do corpo, é o tempo necessário para a reelaboração psíquica diante de um acontecimento que embaralha as referências simbólicas e imaginárias anteriores. Entendemos que há uma exigência ética e política relativa ao tempo de se compreender uma experiência dessa ordem, quer seja um vírus que assola o mundo ou o nascimento de um novo ser. A quarentena atual e sua lógica necessariamente comunitária poderiam também trazer contribuições para se pensar a quarentena parental. Todos precisam cuidar de si e dos outros, senão será impossível seguir. Nesse sentido, deveria haver suporte social e cultural que oferecesse a oportunidade de parada na quarentena dos pais e do país.

* Isabel Tatit é psicanalista e mãe de Lucas e Martim. Sobrevivendo à sua segunda quarentena há mais de um mês, tem a escrita como forma de respiro. Claudia Simionato é psicanalista, professora, mãe da Martina e não vê a hora de essa quarentena acabar pra sua filha poder fazer bruuuuu com outros bebês.