Por Ana Lucia Gondim Bastos*

Setembro é mês de feriado nacional. Feriado que celebra a liberdade de nossa pátria, que lembra o brado “Independência ou morte”, proferido em 1822 por Dom Pedro, às margens do rio Ipiranga. Décadas mais tarde, em 1888, a cena foi retratada por Pedro Américo numa pintura de grandes dimensões, consagrada e difundida como verdadeira fotografia do ocorrido: com uniformes militares, espadas em riste e sobre cavalos, um grupo de homens brancos capitaneado por Dom Pedro livra o país do jugo dos colonizadores. É uma imagem que compõe nossa memória coletiva, construída por lembranças e esquecimentos, como certa vez advertiu Cida Bento, psicóloga e ativista negra. No caso, uma memória encomendada, com escolhas muito definidas do como lembrar e do que lembrar, para ser repetida sem elaboração ou crítica.

Quase dois séculos depois, em 2021, assistimos a uma espécie de reedição da cena do quadro de Américo, deslocada do rio Ipiranga para a av. Paulista: uma elite branca e inescrupulosa celebra uma liberdade para poucos, fruto de expropriação e de dominação autoritária. Dominação baseada num discurso de igualdade e liberdade que exclui da categoria de ser humano todas as formas de ser e viver fora dos padrões burgueses do colonizador branco. A racialização, invento colonial que justifica o sistema escravocrata de produção, segue com violentos efeitos no laço social, separando e hierarquizando as pessoas segundo classe, cor e gênero.

Em 1851, numa convenção em Ohio sobre direitos das mulheres, Soujouner Truth, ex-escravizada estadunidense, proferiu um discurso no qual denunciava tal separação e hierarquização: “Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagem e devem ser carregadas para atravessar valas e que merecem o melhor lugar onde estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar poças de lama, e nunca me oferecem melhor lugar algum! E eu não sou uma mulher?”[1].

Quase um século e meio depois, os documentários Justiça (2004) (imagem) e Juízo (2007), de Maria Augusta Ramos, denunciam algo semelhante, retratando o cotidiano de promotores, juízes e defensores no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro durante audiências de custódia de adultos e adolescentes. Os acusados, quase todos pretos – ou quase pretos de tão pobres, como diriam Caetano Veloso e Gilberto Gil -, têm desconsideradas, assim como o fez nossa história, suas condições de vida e suas oportunidades de cidadania. Recusando a desigualdade social em que vivemos e a estrutura do nosso sistema carcerário, os documentários mostram como a justiça criminal naturaliza a separação e a hierarquização de quem é ou não digno de pleitear a garantia de direitos humanos, além de questionar a percepção que, tratando a população mais vulnerável como o algoz, o grande perigo, a fonte da insegurança e violência social, a revitimiza.

A diretora pouco ou nada intervém nas cenas de tribunal e carceragem, mas de forma sensível registra olhares, risadas e movimentos corporais que nos levam às perguntas: e essas pessoas não são gente, se a garantia de direitos humanos torna todos os humanos iguais perante a lei? Quem pode ser considerado humano?  E esses adolescentes não estão em processo de formação tanto quanto os filhos dos donos do poder? Não deveriam estar sendo protegidos ao invés de expostos à humilhação e ao descrédito social?

Desde 2015, o mês de setembro é o mês de prevenção ao suicídio. Assim, precisaria ser também o mês desse tipo de resgate histórico, de enfrentamento dos excessos traumáticos de crescer numa pátria que se desenvolveu à custa da banalização do mal, da tortura e da expropriação. Precisamos olhar a violência que, marcando nossas narrativas e corpos, atravessa nosso cotidiano e a violência institucional e estrutural, projetada maciçamente nos mais vulneráveis. Não podemos pensar numa psicanálise desafetada desse contexto, que não o considere no entendimento de nossas formações subjetivas. Afinal, de que sujeito falamos?

* Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), tem mestrado e doutorado na área de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, ambos concluídos também na USP. Atualmente é coordenadora do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[1] Disponível em https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acessado em 16 de setembro de 2021, às 10h40.