Por Tatiana Siqueira*

Entrei no cinema depois de quase dois anos sem frequentar as salas. Como sempre fazia antes da pandemia, comprei um pacote grande de pipoca, um copo maior ainda de refrigerante e me sentei na poltrona. Era estranho, o que poderia ser sentido como acontecimento não reverberava assim em mim, eu estava sem qualquer expectativa, nem mesmo vontade de me divertir.

Sabia que o filme escolhido seria impactante. O cansaço dos tempos difíceis que temos vivido em nosso país ganhava força com as condições do Brasil da década de 1960, retratadas na tela à minha frente. O filme Marighella, já no abre-alas, anuncia que o Brasil sofreu um golpe militar no ano de 1964, golpe este orquestrado pelo governo dos Estados Unidos, com o apoio de parte expressiva da sociedade da época, sob o pretexto de livrar o país da suposta ameaça comunista.

Enquanto psicanalista, vou me deter por um instante neste preâmbulo, pensando sobre os efeitos que o filme teve em mim e o que eu pude pensar a partir deles. Pois bem, já nesse início algo me desassossegou. Esse incômodo perdurou durante os 155 minutos do filme.

O desassossego não se deu unicamente pela violência retratada nas cenas de tortura, morte e luta armada, ele se instalou antes mesmo do filme, já no preâmbulo. As frases curtas, simplesmente exibidas na tela, como puderam me tocar tanto? Pois é, o inconsciente se apresenta na simplicidade, e “simplesmente” a História me tocou (uso aqui História, com H, de propósito).

Essa História é velha conhecida, nada de novo era projetado nessa sessão. Eu já sabia do golpe militar, do apoio de parte da sociedade, do silenciamento de alguns da imprensa por conivência ou pela censura. Trata-se do Brasil, da História recente do meu país, História que eu conheço. Então por que agora eu me assustava?

Freud, em seu texto “O inquietante”, de 1919, relaciona algo inquietante a algo terrível, capaz de despertar angústia. E acrescenta: “o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”[1]. No mesmo trabalho, Freud relaciona a sensação de inquietação com a repetição e esclarece: “As considerações nos levam a crer que será percebido como inquietante aquilo que pode lembrar essa compulsão de repetição interior”[2].

Repetição, o velho conhecido retorna. A repetição associada à pulsão de morte é percebida em uma nova situação, mas que traz elementos que coincidem com o que já foi vivido. O que não pode ser tratado retorna. Não estamos mais no Brasil de 1960, muito mudou de lá pra cá, porém sentada na poltrona, em frente à telona, ouço a tão atual suposta ameaça comunista e, como resposta, um governo autoritário com tendências militares e a suspensão dos direitos humanos.

Deslizei pelos significantes Ma-ri-ghe-lla, Ma-ri-e-lle: ambos negros, ambos mortos de maneira semelhante e cada um à sua maneira lutando pelo que acreditava.

Quando o filme se encaminhava para o final, percebi que não tinha conseguido comer a pipoca nem tomar o refrigerante. Foi impossível engolir. De repente, antes de subirem os créditos, eu ouço um grito: FORA BOLSONARO. É impossível engolir o que nos acontece hoje.

Então finalmente dou um sorriso, o primeiro em 155 minutos. Meu coração se enche de esperança. Lembro de um trecho do poema “Uma didática da invenção”, de Manoel de Barros: “Repetir repetir – até ficar diferente./ Repetir é um dom do estilo”[3].

Pois é, há que lembrar que a repetição, no final, é sempre a repetição do novo.

* Psicanalista, membra da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano. Mestra e doutoranda em Psicologia.

[1] FREUD, S. (1919) O inquietante. In: Obras completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 331.

[2] Ibid., p. 356.

[3] BARROS, M. Uma didática da invenção. In: O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, p. 16.