Carlos Eduardo Meirelles

Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, Mestre em Psicologia pela USP

A atuação em um órgão de assistência social em uma região periférica da Grande São Paulo entre 2008 e 2013 constituiu uma experiência de alteridade a mim que cresci nas regiões centrais da cidade. Um dos aspectos foi testemunhar a presença do Primeiro Comando da Capital (PCC), sua dinâmica no território e efeitos na comunidade, em descompasso com a visão que eu possuía, produzida desde meu lugar social. Em 2015 apresentamos uma conceituação da experiência, publicada na revista Stylus, da qual extraímos alguns elementos para os leitores do Boletim PSI.

Os trabalhos da antropóloga Karina Biondi e da socióloga Camila Caldeira Nunes Dias, que realizaram estudos de campo em presídios e comunidades, foram muito importantes para um entendimento mais amplo da experiência. O documento mais impactante, contudo, e propício para transmitir o estranhamento da experiência, é o longo depoimento de Marcola, considerado um dos líderes do PCC, a deputados federais na CPI do Tráfico de Armas (Brasil, 2006).

No início, Marcola explica a função de organizações como o PCC: “Nós todos somos praticamente filhos da miséria, todos somos descendentes da violência, desde crianças somos habituados a conviver nela, na miséria, na violência. […] Quer dizer, a violência é o natural do preso, isso é natural. Agora, essas organizações vêm no sentido de refrear essa natureza violenta […]. Ela proíbe ele de tomar certas atitudes que pra ele seria natural, só que ele estaria invadindo o espaço de outro, o senhor entendeu? De outro preso. E elas vêm no sentido de coibir isso mesmo” (Brasil, 2006, p. 25). Dentre os primeiros atos do PCC estão a proibição do estupro, do roubo e do crack em todas as prisões do Estado de São Paulo, sob o argumento de afronta à “dignidade humana” (Id., Ibid., p. 27), em decisões debatidas e definidas por voto de todos. Qualquer preso, de qualquer um dos presídios, pode emitir uma opinião, que circulará pelos presídios estaduais, buscando-se um consenso. Outra ação nos presídios foi a educação para hábitos de higiene e saúde, com a distribuição gratuita de produtos para tal, que por direito o Estado deveria fornecer mas não o faz (Id., Ibid., p. 31, p. 99, p. 197). Outra regra que sustentam é a própria condição da palavra como lei. Em conflitos variados em prisões e favelas há a obrigação de haver um diálogo, com busca de consenso, onde antes se resolvia com atos impulsivos de violência. Tal princípio se expande para o próprio uso da língua: “Mais decisivo é perceber que isso que se chama PCC se efetua nos quatros cantos da cidade, onde se fala e se escuta […] esse modo específico de travar conversas, marca registrada do PCC, que substitui os ‘palavrões’ e as ofensas banais por um novo jargão ‘do crime’ […]. Esse modo de travar conversas é efetuado também por crianças de 7, 8, 9 anos, que já sabem que não devem mandar seus colegas ‘tomar no cu’. Já preferem dizer: ‘Veja bem, fulano, essa fita não tá certa. Vamo debater essa fita’” (Marques, 2010).

Surgido após o Massacre do Carandiru de 1992, como forma de defesa contra abusos de poder de diversas ordens, o PCC pede que o código penal seja cumprido, com o fim das torturas nas prisões e a inclusão da educação e profissionalização como meio de ressocialização do preso. Defendem também, como muitos juristas (Carvalho e Freire, 2005), que seja extinto o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) que, com critérios genéricos, prevê o isolamento do preso 22 horas por dia por um ano, renováveis indefinidamente, em flagrante descumprimento das regras mínimas da ONU para tratamento de reclusos, se aproximando antes do uso medieval da masmorra. Comumente descrito como uma lei paralela, o PCC não propõe uma lei sadiana, algo como o direito universal ao gozo desmedido e abusivo (Lacan, 1966b, p. 780), mas, pelo contrário, denuncia que a lei esclarecida do Estado democrático é pervertida, convertendo-se no seu inverso. Isso se transforma em causa, cativa multidões, e motiva os ataques violentos a policiais e as rebeliões em presídios. Não há como entender o crescimento e a força do PCC desconsiderando esse eixo ideológico de sua estruturação, que se acrescenta à busca por lucro e poder comuns em outras organizações similares.

Recorrer à noção de sintoma para conceituar o lugar de emergência dessa formação de grupo não se deve ao pensamento corrente de que se trata de uma doença a ser eliminada, mas antes, em uma articulação do pensamento psicanalítico com a teoria marxista, que se trata da manifestação de uma verdade no furo do saber, por um lado, e por outro, de uma formação conciliatória, ainda que com mal-estar. Em 1966 Lacan indica que “é difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha do saber. […] Uma verdade de uma referência diferente daquilo, representação ou não, pelo qual ela vem perturbar a boa ordem. […] Essa dimensão, mesmo não sendo explicitada, é altamente diferenciada na crítica de Marx” (1966a, p. 234-5). No Seminário 18 afirma diretamente que “o responsável pela ideia de sintoma foi Marx” (1971, p. 153).

A noção de sintoma social, proposta por Lacan, advém do lugar do proletário na teoria de Marx, em especial no que se refere ao lugar de verdade na exposição da contradição inerente ao modo de produção capitalista. É uma noção que vai além do sintoma como formação de compromisso, a ocupação de organizações onde o Estado está ausente, mantendo um certo status quo. O proletário, como aquele que é despojado de tudo, expõe algo não dito pelo ideário capitalista, que é a produção ativa da pobreza e da desigualdade. Zizek afirma que a extração da mais-valia “[…] representa a negação interna do princípio universal da troca equivalente de mercadoria; em outras palavras, ela acarreta um sintoma. […] Ponto de exceção que funciona como sua negação interna” (Zizek, 1996, p. 307). A desigualdade se torna um efeito necessário, satisfatória para a concentração de lucros, e não uma falha no percurso. Lacan diz que “o subdesenvolvimento é, muito precisamente, a condição do progresso capitalista” (1971, p. 36), “a expansão do capitalismo veicula o subdesenvolvimento” (Ibid., p. 47). A desigualdade é um capitalismo bem-sucedido, desde que não atrapalhe de mais a boa ordem, com greves, revoltas ou redução demasiada do consumo. A igualdade de condições para produzir conforme o esforço individual, a liberdade de iniciativa para empreender, a tendência ao equilíbrio das forças econômicas por efeito do livre mercado, se revelam proposições falhas, e o proletário expõe o desequilíbrio de poder que deixa sem escapatória a expropriação do valor do trabalho. Uma multidão de despojados vivendo em torno de ilhas de opulência necessariamente cria uma situação de permanente tensão, com todos os riscos à manutenção boa ordem.

Em relação especificamente ao conceito de sintoma social proposto por Lacan, ele afirma: “Há apenas um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social, em outras palavras, semblante” (Id., 1974). A noção de proletário como “aquele que assegura a função do que é mais despojado no capitalismo” (Lacan, 1971, p. 154) advém de Santo Agostinho (Xavier, 2013, p. 98), que assim se refere aos romanos cuja única função era ocupar a terra e reproduzir (fazer prole), para manter as fronteiras do império, possuindo nada além do próprio corpo. Em comparação com o escravo antigo, Lacan articula que “o proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber” (Id., 1969-1970, p. 140). O escravo sabia produzir todos os objetos que a sociedade precisava. Sabia como plantar, produzir ferramentas, tecer, construir as moradias. Na era moderna, com a divisão do trabalho em linha de produção cada um não domina mais o produto final por completo. Com o advento da máquina há um distanciamento ainda mais radical do saber fazer, pois para operar uma máquina em uma linha de produção não é necessário eventualmente nem saber o que se está produzindo. Basta dominar algumas operações simples de um mecanismo, movimentos elementares e repetidos. A força de trabalho se torna abstrata, praticamente pura força do corpo em procedimentos rudimentares, bastando ter um corpo para trabalhar na fábrica. “[…] Não é como Saber — ao oposto do escravo antigo, portanto — mas como simples força de trabalho que o proletário entra no processo de produção capitalista […]” (Askofaré, 1997, p.180). A perda do laço social do proletário se manifesta como isolamento em uma tarefa apartada do todo; o relacionando com a máquina e não com outro corpo humano; e o hiato de conhecimento e poder a toda rede de determinações do trabalho.

Dentre os diversos pontos de surpresa que pode se encontrar na constituição do PCC, indicamos aqui mais um, que se refere à busca por saber, não exatamente ao saber-fazer do escravo antigo, mas o saber de mestre dos grandes pensadores da cultura. Quando o deputado Paulo Pimenta (PT) aponta no PCC uma “estrutura leninista” (Id. Ibid., p. 29), Marcola confirma: “A gente leu muito sobre Lênin, sobre a formação do Partido Comunista. A gente lê sobre tudo. DEP. PAULO PIMENTA — Quando tu dizes a gente lê, tu queres dizer que é uma prática dos dirigentes estudar? MARCOLA — Dirigentes, não, presos em geral. DEP. PAULO PIMENTA — Mas preso comum estudando Lênin? MARCOLA – Claro, por que não? […] Por que o preso faz isso? DEP. PAULO PIMENTA — Por quê? MARCOLA — Porque ele foi acordado, foi conscientizado, numa determinada época, de que os direitos dele, enquanto ele não soubesse que ele tinha determinados direitos, eles jamais seriam concedidos, o senhor entendeu? Então foi uma forma… foi um despertar” (Id. Ibid., p. 29). Discutem a estrutura do partido comunista e Marcola cita ainda “Mao Tsé Tung” (Id., Ibid., p. 30), “Nietzsche”, “Voltaire” (Id., Ibid., p. 92), “Victor Hugo”, e “Santo Agostinho” (Id., Ibid., p, 93), como algumas de suas leituras que vem à cabeça.

É possível considerar uma dimensão subversiva nas proposições do PCC, na medida em que efetivamente transformaram as prisões e as comunidades periféricas de São Paulo, condizente inclusive com a redução dos índices de crimes nos anos 2000 no estado de São Paulo, e na medida em que conseguem formular a inversão da lei do Estado democrático, denunciando a conversão da justiça em violência. Contudo, a reprodução da violência no interior do PCC é uma contradição admitida pelo próprio Marcola (Brasil, 2006, p. 35). A interpretação com a noção de sintoma social sugere que as tentativas de eliminar o PCC com repressão abusiva tenderão a justificar e consolidar mais a causa que os funda, por repetir a violência histórica de que são efeito. Mais profícuo seria ouvir o que o sintoma diz, reconhecer no campo político as demandas que são legítimas e legais, e favorecer a deposição mútua das armas.

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