Por Fernanda Zacharewicz
Meu desejo era ter aberto o P.S.I. deste ano apresentando nosso planejamento, vislumbrando um ano em que pudéssemos compartilhar a liberdade de pensamento e expressão, um ano de muitos frutos culturais. Não consegui escrever. Os ainda poucos, mas significativos avanços duramente conquistados nos direitos humanos e na Ciência são derrubados um a um, num rápido efeito dominó, o que me faz pensar se não voltaríamos a viver nos moldes da Baixa Idade Média daqui a alguns anos.
Ainda temos o compromisso de escrever sobre a importância da resistência, da luta. Ufa! Enquanto resisto no dia a dia, oferecendo a escuta para meus analisandos, confraternizando com os amigos que também estão sofrendo, escolhendo os temas importantes a serem publicados neste período (pois, a meu ver, a editora é um instrumento de resistência), sobra pouca ou nenhuma força para escrever.
Noite passada acordei inquieta, levantei, fui deitar na rede fora de casa. Dessa posição, somente era possível ver uma faixa do céu estrelado. Sempre me alegro com céu estrelado. Não deu dois minutos passou uma estrela cadente. Fiz um pedido. Ah, quem resiste a fazer um pedido para a estrela cadente? Lembrei-me de uma amiga querida, juntas fizemos uma das viagens mais bonitas. Havíamos alugado um quarto bastante simples na casa de uma mulher de uns 32 anos, com dois filhos pequenos, 10 e 4 anos. Era verão. De noite, nós cinco nos deitamos na grama e ficamos a contemplar as estrelas. Nessa ocasião, vi minha primeira estrela cadente.
Essa mulher, divorciada, contou a história de agressão física, repressão e dificuldade comum a tantas mulheres de qualquer parte do mundo. Com ela, ali na grama e, no dia seguinte, dividindo a parquíssima refeição, senti que não estava só no que acredito. Com ela, mesmo aqui, com um oceano enorme nos separando, eu luto para que nossas filhas possam sair sem medo na rua, para que possam amar tranquilas seus parceiros e/ou parceiras sexuais, possam decidir sobre a forma do seu corpo e se farão uso ou não da sua capacidade de reprodução.
Na época, ainda precisávamos conquistar toda uma constelação de direitos. Falta muito ainda a conquistar na trajetória das mulheres nas ciências, no mundo corporativo, nas artes visuais, na música, na psicanálise…
Ontem, vendo a estrela cadente, lembrei-me desse momento. Alegrou-me o coração. O vento soprou, uma nuvem encobriu as estrelas e, instantaneamente, uma flor caiu no meu colo. Sorri, mas antes levei um susto enorme! Pulei! Era mais provável que fosse uma barata, um sapo… Não estou acostumada a essas delicadezas.
Nos últimos dias nadei no mar, há muitos anos não fazia isso. Aprendi a nadar no mar com meu pai, passando a rebentação. Aprendi a ultrapassar a rebentação e aí era possível dar braçadas largas, fortes, a correnteza já quase nem era sentida. Dessa vez, foi mais difícil começar, acostumar-se com a correnteza sem perder a direção, sem fazer esforço desnecessário e terminar nadando em círculos ou para o lado errado. Havia que estar atenta. Deu. No primeiro dia, a dificuldade foi enorme, depois foi ficando mais fácil. Quem estava comigo dizia aos que se preocupavam: ela nada, é simples assim.
É simples assim: este ano eu sigo, lado a lado com os companheiros de trincheira, lutando, escutando, publicando, criando minhas filhas como ato de resistência.
Peguei a flor, tornei a deitar e olhar para o céu. A nuvem já havia se dissipado. Eu voltava a enxergar as estrelas, pois depois da rebentação sempre encontro um montão de mar calmo. Adormeci embalada pela rede tecida por todas as mulheres do mundo.

* Fernanda Zacharewicz é psicanalista e editora da Aller.