Por Renata Rampim*

 

É possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quando o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose […][1]

 

Algumas perguntas me inquietam desde o início de minha prática na saúde mental, há 2 anos e meio aproximadamente. A princípio, questionei sobre o fazer do psicanalista na saúde pública, mais especificamente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Como é sabido, CAPS são unidades de atendimento a pacientes com sofrimento psíquico e social grave; eles são os substitutos dos antigos depósitos de pessoas, conhecidos como manicômios. Os CAPS, ao contrário destes, são equipamentos de saúde que visam incluir o sujeito de desejo e de direitos. Inclui, principalmente, aquele que vive em extrema vulnerabilidade social.

Entretanto, intrigada com a rotatividade de psicanalistas (colegas, mas não só) que dizem já terem passado por instituições públicas de saúde mental, ou seja, passaram mas não permaneceram, e que, ao mesmo tempo, dizem ser possível exercer a psicanálise em tais instituições,  questionei-me: por que muitos psicanalistas (ou a maioria) não permanecem em uma instituição pública de saúde? O que faz com que não fiquem na ponta do atendimento?

Uma ideia muito recorrente entre colegas é que existe um tempo de permanência desse profissional em tais instituições, sendo da ordem do insuportável seguir trabalhando a longo prazo sob situações precárias. Escutei de amigos frases como: “Como está aguentando? O máximo são x anos…”. Surpreende-me: fazendo uma pesquisa rápida, aparecem inúmeros trabalhos articulando psicanálise e saúde mental, psicanálise e saúde pública, grupos de estudos, artigos, teses, entre outros, sobre o fazer/escuta do psicanalista em instituições públicas de saúde; encontramos grande quantidade de defesas e possibilidades em ser psicanalista nesses equipamentos, que, para mim e para todos que li e com quem conversei, não diferem do consultório dito tradicional de psicanálise, no sentido de escuta para que o sujeito tenha voz.

Quando o analista se faz presente, ocupando o lugar de objeto, ele opera com o discurso do analista. Mas qual o lugar do analista na instituição? Considerando possível, de acordo com relatos e textos, uma psicanálise aplicada na ponta, por que a maioria dos psicanalistas não permanecem? Começa a ficar claro, após minha experiência, alguns motivos da não permanência de analistas[2] nos CAPS. Dentre eles, estão a jornada de trabalho intensa, que, consequentemente, torna-se exaustiva e até improdutiva, além das cobranças institucionais para que o trabalhador (não só o psi, mas também o de outras áreas) ocupe um lugar de tutor da vida do chamado usuário. Soma-se a isso, o salário obsceno pago em troca da grande responsabilidade imposta, já que o imperativo é “dar conta” da vida do outro. Concomitantemente, escutei de pouquíssimos pares que, nos CAPS em que trabalharam, foi possível sustentar o impossível do trabalho, pois era aceitável a inclusão da falta, do não saber (mas, vejam, trabalharam!). Parece contraditório querer incluir alguma falta em meio a tanta falta material (pobreza extrema, loucura, falta de cultura, lazer, estímulos, faltas!), o que não é o mesmo que a falta constitutiva do sujeito. Contudo, paradoxalmente, só é possível permanecer em um trabalho como esse se a castração puder ser posta na roda, o que não é o caso, já que as cobranças são para que a castração não dê as caras.

A escrita deste breve texto aconteceu em 2019 como produto de um cartel sobre o seminário 17[3] de Jacques Lacan e agora foi lapidada para esta publicação.  É um texto com questionamentos e inquietações. Algumas perguntas são necessárias, e talvez o texto esteja mais permeado por elas do que engessado por certezas. É possível operar com a psicanálise quando o psicanalista é convidado a se retirar dessa posição, na medida em que dele é demandado um saber totalitário sobre a vida dos usuários e de seus familiares e já que é convocado, em reuniões de equipe, por exemplo, a dar provas de que sabe “tudo” sobre o outro? Como manter a escuta do outro se pedem um saber em ordem cronológica, linear, sem furos, como se este saber de mestre fosse transformar o usuário em um neurocapitalista?

Tais pedidos vêm implícitos em falas como: “cuidem, eduquem” ou, como diz Figueiredo[4], faça uma terapia da restauração, isto é, cure o sujeito fazendo com que retorne ao estado anterior à doença. Os pedidos surgem, também, quando, em nome do dispositivo considerado técnico de referência, o trabalhador é convocado a assumir a posição de detentor de um saber todo para dar respostas imediatas sobre os caminhos e destinos da vida do outro, significando que esse trabalhador “entendido” em saúde mental precisa eliminar o sofrimento do sujeito tanto no campo social quanto no psíquico.

Figueiredo destaca a importância do fazer do psicanalista nas instituições públicas, dizendo ser possível um trabalho compartilhado e horizontal com a equipe, desde que o psicanalista se coloque como um “aprendiz da clínica” , ou seja, “a posição subjetiva dos profissionais deve ser estrategicamente vazia de saber a priori, e que o saber fornecido para construção de caso seja com os elementos fornecidos pelo sujeito e não da convergência de saberes múltiplos dos profissionais que, no máximo, produzem um saber sobre o sujeito”[5]. É uma tentativa, uma aposta. Mas o que se encontra na prática, no dia a dia, não é bem isso, principalmente pelo fato de o psicanalista ser só um entre vários na equipe.  É verdade que, na medida do possível, tentamos fazer resistência ao discurso do mestre e do universitário – lugares que somos convocadas a ocupar a todo o momento – e às cobranças institucionais de um fazer tudo pelo usuário. “Faça tudo por ele!”, “Saiba toda sua história!” – eis os imperativos. Esse lugar de onipotência não cabe a ninguém, mas existem aqueles que se outorgam o direito de colonizar a vida e o gozo do outro.

Apesar de existir espaço para uma crítica sobre a competência e os tratamentos dos casos clínicos,  não é permitido um “abrir de livros” como parte da formação e do trabalho – o que daria maior consistência ao debate -, uma vez que não há redução de carga horária e os estudos teóricos que deveriam fazer parte do trabalho de condução dos casos não são permitidos. Preconiza-se o fazer em detrimento dos estudos teóricos.  Linha de produção para responder ao Estado.

Infelizmente, constatei – não sozinha, mas em diálogo com pares da própria instituição – que o Sistema Único de Saúde (SUS) não contempla psicoterapia, que dirá psicanálise em intensão. Ainda encontramos grupos terapêuticos, eu mesma conduzo um. Porém, em geral, não há espaço no SUS – na saúde mental – para o tratamento longitudinal pela palavra. O que vai ficando cada vez mais claro é que há uma transtornização dos CAPS e uma medicalização massiva. Renunciou-se à palavra em favor da contenção via medicalização e do assistencialismo. Os ganhos que o SUS proporcionou e proporciona são inegáveis, mas, no campo psi, falta muito investimento e contratações de profissionais em relação à quantidade gigantesca de usuários em sofrimento, os quais buscam um lugar de acolhida e escuta. A situação se agrava neste momento de pandemia.

A proposta da clínica ampliada e compartilhada é incluir diversos saberes para descentralizar o saber do Um. “Outro aspecto diz respeito à urgente necessidade de compartilhamento com os usuários dos diagnósticos e condutas em saúde, tanto individual quanto coletivamente”[6]. Entretanto, o que encontramos ainda é a ordem médica operando, muito mais na cultura da instituição do que na pessoa do médico.

Dentro do funcionamento institucional, existe uma função ocupada pelos trabalhadores chamada técnico de referência: a ideia é que esse técnico seja um organizador e articulador com a rede intersetorial, fazendo com que o paciente não fique errante pelos equipamentos de saúde e por outros setores, bem como gerencie os casos a serem levados em reuniões de equipe. Contudo, essa função referencial ocupa a maior parte do tempo do profissional, e o que é específico de cada ofício fica em terceiro plano.  Qual é a identidade da psicóloga, da assistente social, da enfermeira?

Em reuniões de equipe, por exemplo, quando se discute um caso, imediatamente vem a pergunta: “De quem é fulano?”. É da equipe? É da família? Bem, fulano não é de ninguém. É dele mesmo! Geralmente quem se expõe com esse tipo de resposta não é visto com bons olhos. Considera-se que o profissional que assim responde quer se isentar do paciente, quando, na verdade, a ideia seria a de “aprendiz da clínica”, como sugere Figueiredo[7].

O desejo que me move e no qual aposto é o de um trabalho verdadeiramente coletivo e horizontal com a equipe e com o usuário, escapando da imposição de um modelo pedagógico e moral de reabilitação, como acontece com maior frequência.

De acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH),

 

O caminho do usuário ou do coletivo é somente dele, e é ele que dirá se e quando quer ir negociando ou rejeitando as ofertas da equipe de saúde […] Uma história clínica mais completa, sem filtros, tem uma função terapêutica em si mesma, na medida em que situa os sintomas na vida do sujeito e dá a ele a possibilidade de falar, o que implica algum grau de análise sobre a própria situação. Além disso, esta anamnese permite que os profissionais reconheçam as singularidades do sujeito e os limites das classificações diagnósticas.[8]

 

E por que isso não acontece?

Volto às minhas indagações do início sobre possíveis motivos de muitos psicanalistas não permanecerem na ponta: seria por não suportarem esse lugar sem investimentos no trabalhador? Seria por que o Estado é violento e não leva em consideração o sofrimento psíquico daquele que está na ponta? Seria por não haver espaço de estudos teóricos e funcionar na lógica da produção, do discurso capitalista? Gostaria de escutar meus colegas a respeito…

Sabe-se que o discurso do analista pode estar em todos os lugares – no espaço público, na saúde pública, na educação, na casa do sujeito, no consultório -, mas ressalto que existem diversas dificuldades, pois o que é demandado daquele Um é da ordem da anamnese, do assistencialismo, da história cronológica… e, diante de tantas funções, quem “dá conta”?

Todos os textos, dicas, trocas e leituras que faço acerca do trabalho do psicanalista nas instituições são precisos e preciosos, porque indicam uma direção de trabalho, sem dúvida. Mas, infelizmente, percebo que são reflexões direcionadas ou para a nossa bolha de analistas, ou para supervisores analistas que são convidados pelas instituições. Porque, para quem está no dia a dia e precisa responder às cobranças do cotidiano, o buraco é mais embaixo. “Teoria é bom, mas não impede que as coisas existam”[9].

É possível fazer um pouco, pelas frestas...

Por isso, com todas as dificuldades, acredito que a escuta opera. Minha ação enquanto psicanalista acontece fazendo algumas resistências e tensionamentos nas reuniões, tentando intervir no discurso institucional. Hoje, com menos frequência, pois, como foi dito, ser uma no meio de tantos é exaustivo.

A escuta pode operar quando um paciente diz algo em segredo, pedindo para o profissional não levar a fala à reunião de equipe. É possível uma psicanálise, mesmo que seja pelas bordas. Porque, ao estar com o paciente sem precisar cumprir protocolos, fazer anamnese e prestar contas ao Outro institucional, deixo-me ocupar por um lugar que permite ao usuário, em seu ato de fala, se historicizar, descobrir que é outra coisa para além de um CID. Isso por si só já é uma forma de tratamento. A escuta psicanalítica é fundamental para que alguns deslocamentos possam ressituar a história e o destino traçado do sujeito.

Acredito que a psicanálise consegue entrar pela fresta da janela de uma instituição pública de saúde, ainda que com muita rotatividade de psicanalistas. Ela circula e deixa suas marcas, mesmo que de um a outro e outro e outro

Ainda estou lá.

 

* Psicanalista, psicóloga e mestra em Psicologia pelo Núcleo de Psicanálise e Sociedade (PUC-SP). Atende em consultório e atua como psicóloga na saúde pública.

 

[1] FREUD, S. (1919 [1918]) Linhas de processo na terapia psicanalítica. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Direção de tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, volume XVII, p. 180.

[2] Em muitos momentos do texto, utilizarei psicanalista, analista, trabalhador, psicólogo, não como sinônimos, mas como profissionais que ocupam quase o mesmo lugar dentro da instituição.

[3] LACAN, J. (1969-1970) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

[4] FIGUEIREDO, A. C. Três tempos da clínica orientada pela psicanálise no campo da saúde mental. In: GUERRA, A. M. C., MOREIRA, J. O. (org.) A psicanálise nas Instituições Públicas: saúde mental, assistência e defesa social. Curitiba: Editora CRV, 2010.

[5] Ibid., p. 4.

[6] Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: Ministério da Saúde, 2009, p. 10.

[7] FIGUEIREDO, A. C. Três tempos da clínica orientada pela psicanálise no campo da saúde mental. In: GUERRA, A. M. C., MOREIRA, J. O. (org.) A psicanálise nas Instituições Públicas: saúde mental, assistência e defesa social. Curitiba: Editora CRV, 2010.

[8] Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: Ministério da Saúde, 2009, p. 47-48.

[9] FREUD, S. (1893) Charcot. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Direção de tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, volume III, p. 23.