Por Emir Tomazelli[1]

Nesses 45 anos de clínica, frequentemente observo a íntima relação que se estabelece entre a morte e o amansamento da experiência interna de desespero e de rompimento afetivo.

Mais uma vez, ela, a morte, faz seu apontamento e com ele faz seu bem, re-despertando o amor em nós pela via da ameaça da vida.

A morte desperta o além de mim. Desperta o futuro de minha vida e indica que há um lugar onde eu ainda estou inscrito enquanto presença, mesmo que seja apenas como um projeto, uma fantasia, uma ilusão.

Novamente avisto essa sombra da morte rondando – sinto no cotidiano esse voo áspero de asas negras batendo ao redor. Ela não só apresenta o anjo da morte, como também apresenta a força de recolhimento que temos diante dele, esse lindo anjo. (Nem sempre a beleza nos salva!)

Nosso padecer futuro é abrigado em minha hospitalidade, a cada vez que o hóspede se apresenta à minha porta. E a hospitalidade, em sua face mais dolorida, deriva desse receio: temos que acolher o outro não porque exista uma norma social para isso, mas porque o receio é uma recordação, uma reminiscência de um momento futuro possível em nossas vidas, porque inúmeros egos nos legaram o medo da morte que lhes permitiu o sentido necessário da vida.

A hospitalidade é uma recordação que temos do homem passando pelos tempos da vida e deixando um enorme rastro de acolhimento efetivo diante de toda incerteza vivida, porque o que está ali no desamparo pode ser o nosso ser a qualquer momento.

Margareth Mead[2] define como ponto crucial do início da humanidade aquele momento em que se teve acesso arqueológico ao primeiro osso humano que se reabilitou após fratura, isto é, para alguém que tenha sido perigosamente ferido manter-se vivo, alguém cuidou desse alguém de modo a que ele tivesse o tempo necessário para voltar a cuidar de si novamente. E isto é o que faz toda a diferença. Não somos um animal social, somos um animal que necessita de cuidado para manter-se vivo por mais tempo. É por esta razão que nos dirigimos ao outro. Temos consciência de nossa fragilidade, intuímos que a solidão, para ser apreendida, deve estar acompanhada por alguém. É só junto que um pode se sentir verdadeiramente só. O algoritmo da economia e da política é o do abandono, é o do largar alguém à sua própria sorte. E isto é outra história, não há a ideia de cooperação, não há companheirismo.

Por isso que busco trazer à nossa lembrança que a proximidade da morte nos faz bem, principalmente quando entristecemos com ela. Entristecemos dessa tristeza que restaura porque reconhece a perda e aceita a dor do luto. É nesse sentido que a proximidade da morte nos retira do narcisismo e recupera o homem hospitaleiro e a hospitalidade

Nosso único problema é que, por sermos ainda muito imaturos, temos uma desconfiança essencial que, desafortunadamente, nos obriga a olhar para o outro como ameaça ao eu.

No entanto, posso dizer que a morte quando ronda, próxima, desperta em alguns o melhor que esse cada um pode oferecer. Certamente, penso: não é a morte que traz a calma. Mas a morte é, isto sim, um disparador de tristeza, pelo menos naqueles que são capazes de experimentá-la, e é a tristeza aquela emoção que porta o amansamento, de onde brota o gesto amoroso, o acolhimento e o desejo de ofertar algo porque a oferta se torna algo necessário. Isto é: a oferta é aquilo que não pode não ser. Ela é. E ao vir a ser se torna ética, ação direta e objetivação prática.

Me parece curioso que a morte, quando faz sua ronda, seja capaz de recordar a todos (alguns!) que é bem possível que o amor e a prestação de ajuda a quem necessita sejam, ainda, o melhor que temos a dar e que, mesmo assim esse amor, o melhor dele é ofertá-lo graciosamente, isto é, grátis.

Acreditar, ter esperança e fé[3], essa é uma trilha por onde quero passar, é a perspectiva que me atrai. E é por esta atração exercida pela aposta, pela busca, pela luta por tudo que seja ainda possível, que fico feliz de estar ligado a um grupo que pensa que nós, como psicanalistas que somos, constituímos uma das últimas reservas desse produto humano, o cuidado, que nos compete oferecê-lo profissionalmente a quem, agora, sente necessidade de nós.

São Paulo, 19 de abril de 2020

Foto: achado de Abidos, Egito. Período tardio, após 664 a.C. (The British Museum, Londres). Este osso direito do fêmur mostra evidências de união fraca e desalinhamento entre as partes de uma fratura curada. Disponível em https://www.ancient.eu/image/5228/fractured-femur-of-an-egyptian-mummy/. Acesso em 17 de julho de 2020, às 14:40.

[1] Psicólogo, psicanalista e professor.

[2] “Years ago, anthropologist Margaret Mead was asked by a student what she considered the first sign of civilization in a culture. The student expected Mead to talk about fish hooks or clay pots or grinding stones.

But no, Mead said that the first sign of civilization in an ancient culture was a femur (thighbone) that had been broken then healed. Mead explained, that in the animal kingdom, if you break your leg, you die. You can not run from danger, get to the river for a drink or hunt food. You are meat for prowling beasts. No animal survives a broken leg long enough for the bone to heal. A broken femur that has healed is proof that someone has taken time to stay with the person who has fell, has bound up the wound, has carried the person to safety and has tended the person through recovery. ‘Helping someone through difficulty is where civilization starts’ said Mead. We are at our best when we serve others. Be civilized.” MEAD, M. apud BYOCK, I. The best care possible: a physician’s quest to transform care through the end of life. New York: Avery, 2012.

[3] FIGUEIREDO, L. C. (2004) Belief, hope and faith. In: The International Journal of Psychoanalysis, 85:6, p. 1439–1453.