Por Rodrigo Gonsalves*

 

Não se trata de aniversário, não se trata celebração. Muito pelo contrário. Resgatar os eventos ocorridos há 56 anos no cenário político brasileiro trata-se do necessário lembrete de que o rompimento do tecido político democrático é mais fácil de ocorrer do que aparenta.

Estamos, neste momento, atravessando um período completamente peculiar em nossa história global por conta da situação pandêmica do coronavírus e, muito embora estejamos passando localmente por tudo isso, é interessante notar como poucas semanas atrás o clima de pressuposta normalidade imperava por todos os lados…

Voltar o olhar para o golpe de 1964 não se faz válido somente para nos atentarmos à instabilidade democrática nacional e suas intempéries nas repetidas tentativas de estabelecimento, mas também porque nos aponta para a típica atitude apática ou certa postura cínica com a qual experimentamos a sangrenta normalidade.

Se aquilo que nos assombra, nossos fantasmas, estão justamente nos elementos de passado com os quais não entramos em termos, aos quais nunca de fato encaramos de frente e com os quais ainda não encontramos maneiras para lidar, não parece absurdo algum notar que há algo aterrorizante acerca dos fatos históricos da derrubada democrática em nome do poder militar. O susto não está tanto ao lado da disputa pelo poder, mas nos que experimentam tudo isso com ar sereno e tranquilo, chegando até mesmo nomeá-lo “normalidade”.

Encarar a ditadura militar que se seguiu até 1985 como apenas um momento longínquo da história do país, mediante o cenário atual, pode ser considerado por muitos como ingenuidade. Mas, cuidado! Entramos em campo minado! O tecido social, ao se romper, dando margem à exceção do Estado, encontra o caminho pavimentado aos militares. E imaginar que no Brasil isso não mais poderia acontecer parece um otimismo sem medidas. Porém, pior do que um possível oportunismo por parte de alguma frente militar sedente por poder, é notar o possível apoio popular diante do esfacelamento das vias democráticas mínimas conquistadas com tanto sangue e suor.

No entanto, não se trata de crucificar aqueles que encontram nas posturas extremas soluções possíveis. Trata-se, antes, de conseguir ouvir suas perguntas. Aqueles que apoiam tais posturas o fazem por quê? Se não houver condições de escutarmos esses sujeitos que encontram na via militarizada uma resposta, não encontraremos o que dessas pessoas é afetado por tais narrativas.

Não se trata aqui de reverter convertidos, mas sim de antevermos o que possivelmente no futuro encontraremos no resto do mundo. O descuido com a história, o fechar os olhos de maneira proposital, optando por cegar-se, está intimamente atrelado à conjuntura atual. Chico de Oliveira falava sobre o Ornitorrinco e de como o Brasil aparenta de longe uma nação em atraso evolutivo em relação ao mundo. Ele ressalta que isso é puro engano: há no Brasil e em sua própria experiência diante do capitalismo global justamente o que há no mundo de mais avançado em termos de exploração, esfacelamento democrático, destruição de políticas públicas e mais-valia total (repasse de toda a responsabilidade aos trabalhadores que agora são explorados além da mais-valia também por companhias de seguro, por suas condições de trabalhos e corpos, na uberização de suas vidas, como marca Balibar).

Logo, encararmos o fantasma de 1964 é o convite para encararmos os nossos dias de hoje. Justamente para interrogarmos a suposta experiência de liberdade que foi conquistada mas com a qual hoje não mais sabemos o que fazer diante da tamanha complexidade da realidade em nosso cenário econômico e político.

*Rodrigo Gonsalves é psicanalista, doutorando em Filosofia pela European Graduate School e mestrando em Psicologia Clínica pela USP