Por Leonardo Goldberg*

 

Quando nos propomos a escrever sobre o luto, uma das grandes dificuldades se caracteriza pela impossibilidade de se referir a ele sem ao menos tatear também nossa relação com a ideia de morte. A palavra morte comporta um paradoxo lógico em sua significação que remete à temporalidade, afinal, é paradoxal nos referirmos à morte no passado e no presente: eu morro, eu morri… pois, se alguém enuncia, esse alguém segue vivo. Epicuro transformou esse paradoxo lógico em uma ética diante da morte: não haveria por que temê-la, pois se ela está, eu não. Se eu estou, ela não. E esse joguete de presença e ausência esvaziaria o sentido do medo. Em época de pandemia, entretanto, percebemos o quanto referências sociais contínuas, como os colapsos cemiteriais e a situação sanitarista catastrófica, nos evocam a ideia de finitude. Não por acaso, a relação medieval com a morte, também por suas crises sanitárias, produzira tanto efeito na cultura da época, das produções escatológicas às imagens da morte.

O analista também compreende que não há saber sobre a morte, mas há o rito e o luto. E o rito e o luto convocam a conjugação futura: morrerei… Quando perdemos alguém, além da dor de constatar que algo nosso, um pedaço, se vai com esse alguém, lidamos ao menos com a ideia de nossa finitude, e isso desvela que a morte é sempre vivida por um outro, vicária.  O rito fúnebre serve para tentar demarcar claramente um antes e um depois, um “forçamento”, pela via do simbólico, para instituir um mundo dos vivos e outro da memória, o dos mortos: desde o funeral até as palavras endereçadas aos vivos machucados, passando  pelas que marcam a despedida do morto.

O impasse entra aí: primeiro, para realizar, de forma eficiente, que aquele que morreu já não se encontra entre nós. Muitas publicações teimam sobre a importância da visualização do cadáver como garantia da morte e, por consequência, o sucesso de um luto. Pode ajudar, mas é um engodo estabelecer tal momento como garantia. A história é testemunha de que a realidade vacila. Phillipe Ariès relembra, através dos arquivos, que os médicos do século XVI, XVII e XVIII produziram uma verdadeira literatura em torno dos “gritos ouvidos dos túmulos”, dos enterros precipitados, da dificuldade de aferir a morte. Os do século XIX, tão educados pela senda da ciência, não aceitavam um estado misto entre o vivo e o morto. A morte “não passava de uma palavra equívoca da linguagem natural que era preciso abolir da linguagem unívoca da ciência, para designar a parada da máquina”1. Na Medicina Legal, a adoção de um critério exato de morte é uma discussão corrente, que esfria, mas não termina.

Em outras palavras, a prova da realidade, saída de Freud em Luto e Melancolia (1917), não pode ser, de forma alguma, um critério absoluto para pensarmos em um luto bem-sucedido. Aliás, o golpe mais profundo que essa teoria do luto recebeu foi efeito de uma grande pandemia. A noção de perda de objeto, incluindo a prova da realidade e uma possível e posterior substituição, foi colocada em xeque quando a Gripe Espanhola de 1918 vitimou sua filha Sophie Freud, aos 26 anos. A tese de Jean Allouch2 versa sobre uma concepção romântica de Freud diante da morte e da perda. Allouch extrai da partícula “mas” nas correspondências de Freud a prova de seu claudicar sobre o saber dos mortais acerca da morte e uma teoria da substuição:

“[a morte de Anton von Freund é], para nossa causa, uma dura perda, e para mim um vivo desgosto, mas um desgosto ao qual pude me habituar nesses últimos meses (Carta a Ferenczi)

“[a respeito da morte de Sofia] uma amarga dor para os pais, mas, para nós outros, não há muito a dizer, pois, afinal, sabemos que a morte pertence à vida (…) [Carta ao psicanalista Lajos Lévy)

“Você sabe a infelicidade que me atinge; para mim, a desolação, e uma perda que nunca poderá ser esquecida. Mas deixemos isso de lado um instante; enquanto estivermos de pé temos que viver e trabalhar (Carta a Jones).”3 [Freud, citado por Allouch, com os colchetes e aspas e palavras sublinhadas preservados]

Allouch destaca bem a palavra “mas”. Acrescento que, sob a função de uma conjunção coordenativa adversativa, o “mas” revela toda a oposição/contradição própria de uma proposição romântica. A saída freudiana oscila, nesses pares opostos, entre os binários perda/substituição, morte/vida, negatividade/positividade, -/+. Diversos são os textos nos quais encontramos tal fórmula. Em suas “Reflexões sobre os tempos de guerra e morte” (1915), Freud afirma: “No fundo, ninguém acredita em sua própria morte, ou, o que vem a ser o mesmo, no inconsciente, cada um de nós está convencido de sua imortalidade”4. Em “Sobre a transitoriedade”5 (1916), a causalidade é absoluta: é por causa da perecibilidade (-) no tempo que os objetos teriam mais valor (+).

Voltando à morte de Sophie Freud, ao lidar com essa perda – da filha, talvez a impossível de superar –, Freud também escreve para Binswanger:

“É sabido que o luto agudo causado por tal perda encontrará um fim, mas que ficaremos inconsoláveis, sem jamais encontrar um substituto. Tudo o que assumir esse lugar, ainda que o ocupe inteiramente, permanecerá sempre algo do outro.”6 [Freud, citado por Allouch].

Tanto para Allouch quanto para Peter Gay, a escrita de “Além do princípio do prazer” se deve a essa perda. Mas a ideia de uma relação causal entre a morte de Sophie e o conceito de pulsão de morte incomodou o próprio Freud, que afirmou em uma carta a Max Ettington, em 1920: “O Mais-além foi finalmente concluído. Você poderá confirmar que já tinha escrito até a metade na época em que Sophie ainda estava viva e florescente”. Isso não barrou Max Schur, e depois Peter Gay e o próprio Allouch de manterem a hipótese7, que é no mínimo interessante.

Em Lacan…

O paradigma de Lacan para elaborar uma teoria sobre o luto encontra sua máxima na leitura de Hamlet, no seminário 6, O desejo e sua interpretação. A função do rito fúnebre – a dizer, mediar aquilo que o luto abre como hiância – se faz necessária na morte de alguém. O luto “vem coincidir com uma hiância essencial, a principal hiância simbólica, a falta simbólica, o ponto x […]”8.

Lacan ilustra a relação com o objeto desaparecido ao utilizar o episódio em que Laerte pula na cova de Ofélia e, “[…] fora de si, beija o objeto cujo desaparecimento é a causa dessa dor. É evidente que o objeto tem, então, uma existência ainda mais absoluta pelo fato de não corresponder a mais nada que exista”9. Contexto: o funeral é de Ofélia e o Padre se recusa a entoar um grave réquiem pela suspeita de suicídio, uma vez que já estaria fazendo muito ao enterrá-la em solo consagrado. Trata-se de um funeral e de um rito fúnebre “incompletos”, como todos os outros em Hamlet. Laerte, inconformado com a morte da irmã, pula no túmulo e a abraça: “[…] Agora joguem pó sobre mortos e vivos, até que sobre o plano se erga uma montanha mais alta que o Pelião […]”10. Destaquemos também um diálogo de Hamlet com o coveiro, momentos antes, no cemitério. Hamlet pergunta para que homem o coveiro cavava a tumba, eis que o coveiro responde que para nenhum. Hamlet pergunta se uma mulher seria então enterrada lá e o coveiro responde negativamente também. Hamlet muda a pergunta: Quem vai ser enterrado nela? E o coveiro responde: “Alguém que foi uma mulher, senhor; mas que a paz guarde sua alma, já está morta”11. O objeto – presente e ausente – na mesma cena, minúcias da perda…

Lacan prossegue definindo o luto como uma perda verdadeira e intolerável, como o exato e literal inverso da Verwerfung, o inverso no sentido do “que foi rechaçado no simbólico e reaparece no real”12. Assim, o luto tratar-se-ia, literalmente, do que foi rechaçado no real e reapareceria no simbólico. Nesse lugar, nesse buraco no real, se projetaria então o significante faltante. Por isso o rito fúnebre, os ritos, em geral, serviriam para satisfazer a memória do morto e, quando algo não se cumpre, quando algo fica aberto, surgiriam essas loucuras coletivas como as aparições singulares, o ghost em Hamlet, por exemplo. Nessa operação, todo o jogo simbólico, todo o sistema significante é posto em jogo, pois não há como preencher esse buraco no real. Por isso, então, Lacan assume que os ritos funerários teriam um caráter macroscópico, e Allouch destaca a importância de realizá-lo como ato público.

Afinal, quando Lacan diz que “esse significante, só podemos pagá-lo com nossa carne e nosso sangue”13, está se referindo a uma espécie de sacrifício próprio do luto. Allouch vai chamá-lo de “gracioso sacrifício de luto”14. Sob a simples fórmula de que o “luto não é somente perder alguém, é perder alguém perdendo um ‘pedaço de si’ para marcar o valor fálico dessa libra de carne”15, o sacrifício, portanto, envolveria uma operação cuja função é promover a transformação do status de alguém desaparecido em alguém inexistente

* Leonardo Goldberg é psicanalista. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (IPUSP). Autor de Das tumbas às redes: luto e morte na contemporaneidade (Benjamin, 2019).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – ARIÈS, P.  O homem diante da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 538.

2 – ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 161.

3- Ibid., p. 163.

4- FREUD, S. (1915) “Reflexões para os tempos de guerra e morte”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Volume XIV). Rio de Janeiro: Imago, p. 299

5- FREUD, S. (1916) “Sobre a transitoriedade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Volume XIV). Rio de Janeiro: Imago.

6 – ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 161.

7 – Cf. ROUDINESCO, E. e PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

8 – LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e suas interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 364.

9 – LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e suas interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 360.

10 – SHAKESPEARE, W. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015, p. 179, ato V, cena I.

11 – Ibid., p. 175, ato V, cena I.

12 – LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e suas interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 360.

13 – LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e suas interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 360.

14 – ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 387.

15 – Ibid.