Por Carla Rodrigues*

 

Todos os anos, desde 1985, quando a presidência da República voltou a ser ocupada por um civil, o dia 31 de março é lembrado seja como data comemorativa dos militares que tomaram o poder em 1964, seja como forma de repúdio ao regime de violência que se instituiu, matou, torturou, cerceou, oprimiu e mentiu para dezenas de milhares de pessoas. Observo o aspecto da mentira pois, até para efeitos históricos, fomos obrigados a aceitar que o golpe aconteceu no dia 31 de março – tudo porque os militares não queriam estar associados ao dia da mentira, 1 de abril (retrospectivamente, podemos chamar de primeira fake news da história). O domínio sobre a memória individual e coletiva se estende no tempo, impõe-se na Lei da Anistia, de 1979, que impede o julgamento dos crimes militares, permanece na Constituição de 1988, texto que, apesar de toda a mobilização democrática em torno da sua redação, manteve intactas as medidas em relação à segurança nacional, como tão bem observa Edson Teles.

Acho que Lacan concordaria com o uso do termo foraclusão para definir a força de expulsão do passado violento que a ditadura civil-militar de 1964 produziu na formação social brasileira. Impedidos de enlutar nossos mortos e desaparecidos, produzimos inúmeros sintomas de resposta ao duplo trauma: as perdas e a impossibilidade de reconhecer as perdas. É bem verdade que tanto a Comissão Nacional da Verdade quanto as comissões estaduais formadas, ainda que tardiamente, foram uma importante tentativa de enfim simbolizar essas perdas e rememorar os mortos e desaparecidos, cujo esquecimento forçado nos impedia de concluir o processo de luto coletivo por tantas vidas assassinadas e destroçadas. A reação contra o que se pretendia manter foracluído voltou em forma de violência, se lembrarmos do elogio ao torturador Brilhante Ustra feito pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, impulsionando ali uma candidatura que tinha como primeiro objetivo impedir o direito à memória (desenvolvi o argumento aqui).

Neste 31 de março, estamos de novo diante de um duplo trauma. O primeiro, mais evidente, a pandemia do coronavírus, declarada pela OMS dia 11 de março. O segundo trauma é a ameaça permanente, instaurada desde a retirada da presidente Dilma Roussef do poder, de um novo golpe civil-militar. Hesito quando escrevo “novo”. Afinal, um dos motores da ameaça é um presidente da República que não se cansa de exaltar sejam as virtudes dos torturadores, seja o que considera o heroísmo dos militares, reiterado ontem em nota oficial do Ministério da Defesa em homenagem ao 31 de março. O passado, para o capitão reformado Jair Bolsonaro e grande parte dos militares que o cercam no governo, não é só glorioso, é sobretudo glorioso exatamente por ter sido violento.

A exaltação da violência, que sempre esteve presente neste governo, se agrava diante da pandemia: o descaso com as vidas que correm o risco de serem perdidas pela doença, o desprezo pelas medidas de prevenção recomendadas pela OMS, tudo isso torna ainda mais agudo o sentimento de vulnerabilidade posto no horizonte diante de uma doença que pode ser fatal. Um dos poucos recursos que temos para enfrentar a doença é o reconhecimento da nossa interdependência, o elo que nos faz humanos, a condição vulnerável compartilhada, agravada por desigualdades sociais e econômicas que nos obrigam a ver aquilo que muitos de nós preferíamos poder continuar recalcando: vivemos em um mundo que naturalizou o fato de que certas vidas estão mais expostas à precariedade e à morte do que outras.

Neste contexto, o fantasma do golpe militar – que pode ter outras configurações e estar sendo um golpe militar silencioso, solapando a cada dia os parcos recursos institucionais e democráticos de que ainda dispomos – reaparece neste 31 de março sob a falsa promessa de restabelecimento de uma Lei originária e perdida. A repetição do desejo de retorno a um ideal de ordem que, sabemos mais agudamente diante de uma pandemia, não existe se dá num contexto social em que recordar e elaborar nos têm sido negados. Há, no entanto, algo de novo – e agora sim, escrevo novo sem hesitar – porque talvez possamos nos valer do trauma da doença como pulsão de vida, como impulso de rejeição a soluções violentas. De ameaças mortais, basta o vírus.

*Carla Rodrigues é professora de Ética no departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora da Faperj.