Por Ana Lucia Gondim Bastos*

Em meio a uma pandemia mundial, com o Brasil contabilizando mais de 500 mil mortos pela covid-19 e entranhado numa crise política e sanitária sem precedentes que, há mais de um ano, nos deixa em estado constante de tensão e sobressalto, o encontro de um paulistano e uma paraense me proporcionou um momento mágico, um mergulho profundo nas águas e nas histórias contadas às margens dos igarapés da terra de onde vem minha família paterna. Lugar para onde eu sempre podia voltar (e voltava) para me refrescar, me alimentar, me embalar com “as antigas cantigas de amigo irmão, as canções de amanhecer, lumiar e escuridão”, assim mesmo, como em música de Gonzaguinha. Lugar que ficou mais longe de mim nesses tempos sombrios de desalento e tristeza, de luto vivido sem o conforto de abraços e encontros.

Mas num dia daqueles em que a motivação para ganhar as ruas coletivamente foi maior que o medo do contágio, em plena avenida Paulista, eu soube da exposição de fotos da paraense Elza Lima. O convite para embarcar em seu universo de muitos planos, sombras e personagens amazônicos veio pelo curador da exposição, Eder Chiodetto, que sugere costuras, recortes e diálogos muito particulares, entre fotos e vídeo, de vários momentos da obra da artista. O rabo do peixe que pode ser de uma “Sereia arriscada de coração trêmulo”, como num vídeo de 2020, ou as penas de um pássaro branco que podem ser as asas do menino negro de olhar expressivo, quem sabe anjo, do Marajó, em 1997…

E assim eles dois, Elza e Eder, cada um do seu jeito, cada um com seu fazer, a nortista e o sudestino, foram criando, em mim, um “Norte sem norte”, um tempo sem tempo, um movimento estático no qual a dura realidade se mescla com a fantasia, a religiosidade com a laicidade, o universo dos animais com o dos humanos e, ainda, com o dos seres encantados. Tudo com harmonia e equilíbrio repousando em múltiplos planos, assim como a vida acontece e assim como são todas as coisas do mundo.

Só mesmo a arte para dar conta do paradoxo em cada história e só o encontro humano para atribuir sempre novos sentidos às múltiplas narrativas que cabem no mundo. Seguindo como em canção de Gonzaguinha: e foi “como eu despertasse de um sonho que não me deixou viver e a vida explodisse em meu peito com as cores que eu não sonhei. E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim. E é como se então de repente eu chegasse ao fundo do fim. De volta ao começo, ao fundo do fim”.

Deixo AQUI o link para o catálogo da exposição e termino com as palavras de Elza, escolhidas por Eder como convite para o mergulho nas imagens das águas dos nossos rios e nos olhares doces de nossos meninos e meninas: “Não sei fotografar o momento decisivo. Percebo, antes, uma imagem em gestação. Preciso que o tempo passe no negativo. A cena vai se desenhando até chegar o momento em que a imagem se forma. Não há espera, há um embate que se dá entre a minha percepção, a luz, a forma, a sombra e os planos num tempo alongado. Faço muitos fotogramas até que tudo se encaixe. É como esculpir o tempo”.

*Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), tem mestrado e doutorado na área de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, ambos concluídos também na USP. Atualmente é coordenadora do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

A exposição O Norte sem norte: fotografias de Elza Lima fica em cartaz até 1 de agosto no Centro Cultural Fiesp, que fica na avenida Paulista, 1313, São Paulo-SP. A entrada é gratuita deve ser agendada AQUI.