Por Beatriz Chnaiderman*

O mês de aniversário de Boris Solomonovitch Schnaiderman, filho de Соломон Шнейдерман, pai de Carlos Derman, avô de Beatriz Chnaiderman, motivou este pequeno ensaio sobre o que se escreve nisso que faz nome

Uma vez, já muito cansada de não saber disso, perguntei ao meu avô por que é que o nome dele tinha aquele S e o meu não tinha. Cadê o S, o que aconteceu com ele? Eu pensava nos erros dos cartórios, essas contingências que habitam vários nomes de família Brasil afora. Ou, sei lá, tinham resolvido abreviar o nome dos filhos. Abrasileirar. É claro que não. Então, cansada de não saber, perguntei. E foi aí que descobri que o nome dele se escrevia como o meu no documento e que ele assinava com S porque achava Chnaiderman (no alfabeto cirílico, Шнейдерман) com C muito feio, uma coisa impronunciável. Eu estava tão surpresa com o S que sobrava, que veio no lugar do S que faltava, que nem me ofendi com o que ele falou do meu nome.

Eu voltei a fazer essa pergunta a Bruno Gomide quando tive a chance e recebi uma resposta mais sofisticada. Uma hipótese, claro. Boris Schnaiderman estaria preocupado em padronizar as transliterações dos sons do cirílico para a escrita do nosso alfabeto, o que tornaria os nomes russos dos romances e ensaios cada vez mais familiares para nós. Eu não falo russo, mas parece que Ш deveria se escrever Sch, e não Ch. Eu gostei dessa resposta e hoje fico com ela e tento esquecer o desgosto de Boris Schnaiderman pelo Chnaiderman.

Mas a esta altura, convidada por Elisabet Moreira a dar mais uma volta sobre ele, meu avô, mais uma volta sobre Boris Schnaiderman e a perda de Boris Schnaiderman, me detenho nesse desgosto. Chnaiderman não é um erro. É uma escrita feita pela imigração. O nome chegou em russo, em cirílico, e alguém registrou em letras de nosso alfabeto o barulho que fazia o nome daquela família judia russa que chegava ao Brasil com passaportes soviéticos carimbados, o que dizem que era muito raro na época.

Mais um detalhe: Boris Schnaiderman, além de não ser Boris Schnaiderman, mas sim Boris Chnaiderman, não era russo, mas oficialmente ucraniano. Quando perguntado, ele falava sobre o idioma ucraniano com um certo desgosto, parecido com que falou do meu nome, que era também o nome dele. Ele não falava ucraniano, nem tinha interesse, disse que na terra dele, lá em Odessa, tudo era em russo. Mas, pera, a terra dele não era Odessa, mas Uman. Sim, mas meus pais saíram de lá quando eu era muito pequeno, ele dizia, fazendo um sinal de evitação com uma das mãos.

Vocês percebem quantas lacunas há no Boris Schnaiderman russo de Odessa?

É claro, eu olhava para isso desde criança, e as crianças perguntam. Eu tinha uma curiosidade louca por ele. Mas às vezes ele me intimidava com esse Nome Imenso sustentado por sua figura de velhinho silencioso. Um dia, aos quatorze anos, peguei o telefone, liguei pra ele e me convidei pra almoçar na sua casa no meio da semana, quando ninguém mais ia estar lá. Ele me recebeu com uns xerox de presente. E foi assim que estabelecemos uma relação mais além da regularidade domingueira das visitas do meu pai, Carlos Derman. Eu gostava de ir à casa dele pegar uns livros, falar umas coisas, fazer uns silêncios, peguei hábito. E comecei a rodear mais de perto essas lacunas aí.

Uman, a cidade do rabino Nachman, de quem Boris Schnaiderman me disse coisas que eu não sei se inventei ou se esquecei ou se me lembro. Nachman, o rabino hassídico, daquela corrente do judaísmo alegre, dizia meu avô. Uman foi uma cidade duramente atacada pelos progroms. Dessa cidade tão importante para o judaísmo hassídico, meus bisavós foram se instalar em Odessa, fora do bairro judaico e, segundo meu avô, eles eram bastante laicos e russificados. Aos quinze anos, eu gravei uma entrevista com ele sobre Deus, e ele contou da religião na família dele. Cada um escuta a pergunta que lhe cabe, ou ainda, cada um deixa de escutar a pergunta que não cabe…

Um parêntese. Uma vez eu disse pra ele: poxa, você está aí há quase um século, viu a Grande Fome da URSS, lutou na Segunda Guerra, viveu a ditadura de 64 sendo professor do curso de russo, tendo filho procurado vivo ou morto, perdeu a esposa, teve dois cânceres, úlcera, usa marca-passo… E nunca teve religião e nem fez análise! Como? Ele riu e fez aquele gesto de afastamento com uma mão, dizendo: deixe meus macaquinhos no sótão, deixe meus macaquinhos no sótão…

Há uma série Ucrânia-Uman-Judaísmo-Progrons que fica eludida numa primeira abordagem de Boris Schnaiderman, o tradutor de russo. É claro que se escuta aí um nome judaico, e ele se responsabilizava por isso, dizia-se um judeu agnóstico. Tão longe do judaísmo de Nachman, tão longe da cultura profunda judaica da Europa oriental de antes da Segunda Guerra… Ele dizia, sobre a família da minha avó, primeira mulher dele, que eles eram judeus da Shtetl, judeus da aldeia, daqueles que criavam galinhas. Já a família dele era burguesa, urbana, russificada. Mas, perguntando bem, descubro que a avó dele ficava andando em volta da mesa na sexta à noite, cantando coisas incompreensíveis, acendia velas, que tinham que levar as crianças para comer fora de casa no Iom Kippur porque ela jejuava. Sobre isso, ele acrescentou: naquela época, os nossos deuses eram as proteínas e vitaminas. Não o Deus da avó dele.

No que ficou dessa história, a gente até se pergunta se nossa família veio fugindo da revolução – já que eram burgueses e meu bisavô tinha até uma fábrica de sardinhas enlatadas em plena União Soviética – ou dos progroms, que iam atrás desse judaísmo que os marcava para além deles mesmos. Ele contava a lenda de que havia uma palavra russa que os judeus não conseguiam pronunciar por conta do som do R e então a polícia, para saber se alguém era ou não judeu, pedia que a pessoa pronunciasse uma certa palavra. Ele mesmo a pronunciava como judeu. Essa palavra… Eu não me lembro que palavra era essa…

(Chnaiderman, o nome impronunciável).

Ah! A Ucrânia-Uman-Judaísmo-Progroms insiste!

lá está o filho dele, Carlos, meu pai, nomeado em homenagem a Karl Marx. Se Karl é Carlos, Chnaiderman é Derman, por que não? Fora os nomes que ganhou na clandestinidade, na época da ditadura (ele diz que se esqueceu de todos). Como ele faz política e é falado por todo tipo de pessoas, acabou deixando só o Derman, porque Chnaiderman é impronunciável. Meu pai não fala assim. Meu pai tem um jeito mais simples de falar: as pessoas não vão conseguir ler meu nome, depois não vão lembrar. Ficou assim, Carlos Derman, ou melhor, Carlão Derman, o que evitou que me reconhecessem como filha dele numa cidade onde seu nome circulava em todo canto.

Chnaiderman, a palavra impronunciável. A marca do nosso judaísmo, a marca do exílio desse nome que carrega ainda um pedaço germânico de não-sei-quando e a grafia esquisita que não remete a lugar nenhum. O nome de gente que foi expulsa daqui e dali. Nome que escapou de tantos apagamentos, nome carregado desses erros, dessa errância. Boris Schnaiderman se fez um nome sólido para si. Carlão Derman se fez um nome simples para si. E chegou até mim esse nome que ainda sobrevive e que insiste e questiona.

Um exemplo: meu primeiro e-mail, ainda criança, eu nomeei biaderman@… No segundo e-mail, na adolescência, usei o nome que ganhei da minha mãe. Quando fui fazer um terceiro e-mail – devo ter sentido grande necessidade de fazê-lo, uma vez que esse nome insiste -, hesitei: foi por muito pouco que eu não o nomeei bschnaiderman, já que o nome que veio da minha mãe começa com S. B de Beatriz (sim, e de Boris), S, Chnaiderman: bschnaiderman. Eu hesitei diante dessa escrita. Não. bchnaiderman.

No velório de Boris Schnaiderman, deixaram seu rosto à mostra no caixão fechado. Mas, se ele se considerava judeu, o caixão deveria estar totalmente fechado, reclamou Beatriz Chnaiderman. Carlão Derman explicou que viriam pessoas que não tiveram a chance de conhecê-lo, que seria importante para as pessoas ver a cara dele uma vez. Ficou assim. Essa solução de compromisso: nem lá nem cá, nem aberto nem fechado. E tudo bem também, já que, quando dei por mim, o salão estava lotado de gente conversando, e o caixão estava lá no fundo, sozinho, todo mundo de costas para ele. Foi nesse momento que me caiu como um tijolo:

— Meu avô virou palavra.

Palavra.

Um pouco mais, um pouco menos do que isso que é um nome.

* É psicóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP) e psicanalista membra do Fórum do Campo Lacaniano São Paulo (FCL-SP)