Por Douglas Rodrigues Barros*

Como o nosso modo de ser ainda é bastante marcado pelo distanciamento em relação à razão, temos uma tendência quase invencível de atribuir aos grandes críticos, pensadores e cientistas, uma quota pesada de genialidade, de excesso, de exclusão do pressuposto. Sócrates, abalado pelo grande encontro com a verdade após ter descoberto a razão, passa a destituir os saberes constituídos na Acrópole; Darwin, temente a Deus, sofria do excessivo peso de descobrir a fundamentação geral das espécies; Marx, enjaulado na biblioteca nacional, sufocado pela pobreza, atolado nas perdas emocionais – são imagens que nos cativam.

Todos esses atributos nos levam a inventariar as condições das grandes almas, e tais excessos são interessantes como porta de entrada para os candidatos a desposarem o saber. Estaríamos felizes, todavia, se o mesmo pudesse ser dito do recém-lançado seriado Freud da Netflix. Quem sabe uma porta de acesso a Freud que nos brindasse com a imaginação romântica de uma vida dedicada ao Outro? Quem sabe um exagero, certamente, mas que nos guiasse na importância da descoberta do inconsciente e suas contribuições para o entendimento de nossa psique?

Nada disso. Ele, infelizmente, é só mais um sintoma da resistência da racionalidade instrumental. Logo na cena de abertura da série temos Freud pagando uma bela propina para sua empregada fingir estado hipnótico. Depois, Freud, junto com seus amigos, indo a uma sessão espírita. Tudo isso para corroborar a ideia de que: a) as descobertas psicanalíticas são fraudes; b) fazem parte de uma fantasia mística que, embora tenha discursividade, são vazias de racionalidade, “de boa ciência”.

Tudo isso só desnuda o fato de que a ferida narcísica na modernidade ainda não cicatrizou. O apelo à concretude que se esquece da mediação categorial e, portanto, da tensão entre a fala e aquilo do que se fala, marca novamente o apego a um positivismo canhestro e de todo derrotado pela própria ciência contemporânea.

A descoberta de um oceano de inconsciência que rodeia uma ilha pequeníssima de razão cercada por pulsões – desejos recalcados por cerquinhas de arame farpado da finalidade racional – e sua repressão civilizatória constitutiva ainda dói muito na máscula organização da consciência moderna. Tudo isso, esse não dito, não abarcado, esse negativo que nos constitui, deve se tornar, para o medo daquilo que escapa à nossa capacidade de conceituação, um mito, uma ilusão, uma fantasia não interna aos espaços lógicos da fria racionalidade.

É verdade que mesmo o sensível Sartre, antes de ter que lidar com a radical experiência irracional das guerras do século XX, caiu nessa quimera ao dizer “não tenho inconsciente”. Preso aos espaços lógicos de uma ciência moderna positivista (sobretudo), não conseguiu apreender essa negação que escapa à conformação do conceito, vindo a fazer sua bela autocrítica anos mais tarde.

Essa, sem dúvida, é na prática a beleza freudiana: a descoberta do negativo produtor de sintomas, de dores, de sofrimento; esse negativo não observável por uma lógica que parte de princípios a priori. Esse ultrapassar do conceito impotente de Si, que sempre precisa ser revisto, analisado, e trazer à tona aquilo que nega. O retorno do recalcado. A beleza é justamente esse saber: saber identificar o excesso do que somos como um modo de nos libertar das dores frente ao que nos tornamos. Essa é fundamentalmente a beleza da descoberta freudiana, demasiadamente feminina para o modelo de ciência compactuado pelos produtores da Netflix, infelizmente.

* Doutorando em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É autor do livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafisica racial (Hedra).