Por Tatiana Siqueira Ribeiro*
O desejo de ser original não consegue encobrir a realidade de que cada pessoa é uma espécie de cópia repetindo vidas passadas na inautenticidade de um par de aspas.
Declan Kiberd
Torto arado, livro de Itamar Vieira, tem como cenário a fazenda Água Negra e conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia e de seus pais, Zeca Chapéu Grande e Salustiana. Através da história dessa família, o livro aborda também a de um país: a fazenda é, de certa forma, o sertão nordestino, em sua relação com a escravidão e seus desdobramentos humanos e sociais. De escrita forte, já nas primeiras páginas relata um fato trágico vivido pelas irmãs que no corpo de ambas, mutila uma delas e as enlaça profundamente.
O brilho de uma faca, objeto valioso e proibido, seduz as irmãs, como um espelho captura o olhar. É a faca com cabo de marfim que corta a língua de uma delas, e, então, uma passa a ser voz da outra. São Bibiana, Belonísia e uma entidade encantada que narram as histórias dos demais personagens. O enredo se estrutura de maneira a, por vezes, recontar a mesma cena de formas diferentes, ou seja, ela já não é a mesma que foi lida anteriormente, é outra, assumindo contornos distintos a partir da voz de cada uma das narradoras.
Essa estratégia de escrita traz consigo importantes desdobramentos: como uma mesma cena, o mesmo acontecimento, pode ser contado de formas diferentes? Como podemos apreender a realidade? Freud nos ensina que o que se apreende pela consciência já havia se constituído como pensamento. Desde o Projeto ele atribui uma distinção entre a realidade psíquica e a realidade externa, afirmando que a concepção da última de faz a partir se faz a partir da realidade interna.
A concepção da realidade está submetida à busca do sujeito pelo objeto de satisfação sempre perdido. Nessa busca ele alucina, ficando às voltas com essa realidade duvidosa e tendo o Outro como seu operador lógico.
Há primeiro, digamos, uma substância, ou um sujeito da experiência que corresponde à oposição princípio realidade/princípio do prazer.
Há, em seguida, um processo da experiência que corresponde à oposição entre o pensamento e a percepção. O que vemos aqui? O processo divide-se conforme tratar-se da percepção – ligada à atividade alucinatória, ao princípio do prazer – ou do pensamento. É o que Freud chama de realidade psíquica. De um lado está o processo enquanto processo de ficção. De outro, estão os processos de pensamento, pelos quais se realiza, efetivamente, a atividade tendencial, isto é, o processo apetitivo – processo de busca, de reconhecimento e, como Freud explicou mais tarde, de reencontro do objeto.[1]
A realidade é a realidade psíquica, cada sujeito vivencia uma mesma cena de maneira diferente. Itamar imprime em suas palavras os distintos olhares sobre a mesma história, ao misturar tradição, lenda, religião, ancestralidade, com a força de suas personagens femininas, desvela a importância de pensarmos uma literatura brasileira diversa e plural. Um livro que joga um feixe de luz em tempos tão sombrios de nosso país.
* Psicanalista, membra do Fórum do Campo Lacaniano do MS e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Doutora em Psicologia pela UCDB/MS.
[1] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986, p. 46.