Em princípio, e parafraseando Nietzsche, pode-se afirmar que a psicanálise com crianças existe porque nós, psicanalistas lacanianos, a praticamos. Essa prática exige converter-se em um saber técnico para ser transmitido e compartilhado com nossos pares – e a grande quantidade de publicações psicanalíticas que aparece quase todos os dias testemunha essa tentativa. Dito isto, as coisas seriam assim se os sujeitos humanos falantes aos quais chamamos “crianças” fossem inanalisáveis?

De fato, é difícil achar psicanalistas lacanianos dispostos a trabalhar com crianças. Apresentei recentemente[1] um panorama desse problema nos termos do sofisma do “caldeirão furado” de Freud: aquele analista que afirma “não tenho formação para receber crianças”, um pouco mais tarde pode confessar que “o problema é comigo: é que não gosto muito de crianças”; para terminar declarando que “em realidade, a psicanálise com crianças é impossível”.

Essa lógica tem a ver com o axioma das “resistências do analista”, porém com uma nuance particular: trata-se da “resistência que colocam os psicanalistas à teoria da qual depende sua própria formação”[2]. Lacan afirma em 1966 que os psicanalistas resistem a “estudar”. É provável que tal resistência tenha tido, e ainda tenha, efeito nas negativas para receber crianças em análise por parte de muitos psicanalistas.

De todos os possíveis temas a serem considerados com o objetivo de iluminar um pouco o terreno da clínica psicanalítica com crianças, gostaria de revisar aqui dois – deixando claro que os problemas não se resolvem nem se esgotam somente neles, mesmo sendo decisivos na hora de decidir se as crianças são ou não “analisáveis”

I.
Frequentemente se fala da “presença dos pais”.

Sabemos que, inicialmente, para Freud sua existência física (?) constituía a causa da inconveniência da análise com crianças, já que as considerava a encarnação externa das resistências internas (nota-se aqui o impasse gerado por suas concepções espaciais).

Ora, o recurso ao Lacan dixit é impossível neste caso. Não há indicações pontuais, nem citações precisas que possam ser utilizadas para argumentar de forma direta sobre a questão. Sobre este tema devemos produzir nossas próprias articulações. Tanto é assim que nos escassos materiais de estudo publicados sobre a presença dos pais na clínica psicanalítica com crianças, as articulações brilham por sua ausência. No entanto, contamos com algumas tentativas que, a meu ver, naufragam no simples relato do caso clínico, como se a definição ostensiva fosse a única opção diante de algo inacessível. A “presença dos pais” deixa como única possibilidade de transmissão “contar” o que se fez em cada caso? Trata-se somente de um savoir-faire que se executa com a temporalidade do instante, que se improvisa, cuja única via de transmissão-apreensão é a experiência?

Verifiquei que em grande parte dos escritos que abordam esta temática, a “presença dos pais” tem sido considerada um “real” da clínica psicanalítica[3], ao invés de uma particularidade que o dispositivo analítico permite utilizar nas consultas com crianças. Esta sentença é deduzida da premissa da dependência “real” que as crianças mantêm com seus genitores. Pois bem, existe dependência biológica mesmo que não seja específica do campo psicanalítico; e muito cedo Lacan a redefiniu em termos da dependência “significante” para contá-la entre os motivos pelos quais um analista não deveria retroceder ante as crianças[4].  Que seja “significante” permite o trabalho no marco de um “complexo familiar”, tanto como o pertencimento da noção de “família estendida” permite a inclusão de personagens sem laços de sangue com o interessado (les parentes significa, em francês coloquial, “os pais” tanto como “os parentes”).

Se o analista dirige a cura, se estabelecem as diretivas que instalam a “situação analítica”, a “presença dos pais/parentes” se transforma em um dispositivo simbólico incluído no contrato. Então será necessário definir quem participará (porque ante as novas formas de família é conveniente estabelecer quem irá às entrevistas) e com qual frequência (porque a frequência deve ser estabelecida como “fixa” se, por acaso, não queremos chegar atrasados). Tais diretivas, as que contribuem para que se instale um dispositivo de “presença de pais/parentes”, deverão ser propostas sob a forma de instruções em uma comunicação inicial. E o próprio Lacan assegura que elas “até mesmo nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se constitui, no ponto de consequência que ela atingiu para ele”[5]. Sendo assim, as dúvidas que os analistas apresentam sobre como incluir ou trabalhar com os pais/parentes das crianças em análise (dúvidas que podem se manifestar em balbucios ao enunciá-las), dão conta do modo de resistência à teoria que antes citávamos.

Então, a adesão ao dispositivo da “presença de pais/parentes”, como acaba de ser apresentada, Então, a adesão ao dispositivo da “presença de pais/parentes”, como acaba de ser apresentada, exige uma noção bidimensional do “sujeito” que o afaste totalmente de sua compreensão como indivíduo corporizado. Na clínica psicanalítica lacaniana com crianças abordamos um assunto (sujeito) do qual participam diferentes posições subjetivas. A partir de todas ou de qualquer uma delas é possível dizer algo que produza efeitos, levante inibições e resolva sintomas. Não é necessário manter separadas as posições enunciativas, posto que se trata de um único texto que se escreve no momento de ser lido, que não preexiste a seus leitores e que inclui, inevitavelmente, a posição do analista já que a ele é dirigido.

Mas, então… ninguém é responsável pelo que diz?

Abrimos assim o segundo de nossos problemas.

II.
Trata-se agora de deter-nos na noção de responsabilidade por aquilo que se diz.

Tal questão exigiria, em primeiro lugar e porque estamos falando de crianças, estender o problema desde “o que se diz” até “o que se brinca e desenha”; e em segundo lugar apoiar a extensão na estrutura do significante, à medida que esse permite que o jogo seja permutativo e que o desenho se organize ao modo de uma heráldica.

Também deveríamos retificar um pouco a regra da associação livre para abarcar o jogo e o desenho. Trata-se de falar, brincar e desenhar sem se importar com o que é dito, brincado ou desenhado; dirigindo-se ao psicanalista amparado nas cláusulas lacanianas que exigem construir texto e não relato[6], tanto quanto ‘exigem’ instalar-se no discurso a partir de uma “recusa do ouvinte”[7].

E, então, falta aqui introduzir uma releitura do antigo axioma do inconsciente. Se o inconsciente está estruturado como linguagem, essa não pode ser outra que a “linguagem infantil”. Faço constar que realizei um percurso extenso para pôr à prova tal hipótese[8]. Trata-se de uma linguagem que “não esquece” o ato enunciativo (ou seja, o “que se diga”), que não se organiza com os três princípios da lógica aristotélica e que não faz o locutor responsável pelo “que se diz”. No marco dessa linguagem operam articuladamente as posições que Lacan nomeou como falar à la cantonade ou como a do bom entendedor. Dessa maneira, é importante destacar que uma hipótese como a que hoje afirmamos excede em muito a clínica psicanalítica lacaniana com crianças. Quando Lacan se perguntou como se percebe a criança no interior do adulto, não respondeu que todos os adultos já foram crianças, nem que se tratava desse infantilismo tantas vezes detectável nas pessoas grandes. Disse: “A resposta é inteiramente clara – o que é verbalizado de maneira irruptiva”[9].

Verbalizar de modo intempestivo exige vencer a repressão social ante o “que não se diz” (ou que não se julga” ou “não se desenha”), tanto como fingir esquecer as regulamentações que a cultura impõe para dirigir-se a um interlocutor. Desse modo, estamos muito perto do que Freud desejava como posição enunciativa de seus pacientes ao comunicar-lhes sua extensíssima regra da associação livre.

Vamos ao ponto em questão. Deixarei falar Lacan sobre ele: “A palavra admirável da criança é talvez palavra transcendente, revelação do céu, oráculo do pequeno deus, mas é evidente que não a engaja a nada.”[10]. Tal ausência de responsabilidade pelo dizer justifica afirmar que a criança é inanalisável? Lacan chega a propor que a dialética do adulto derrapa (ou seja, que escapa ao controle do condutor) quando trata de vincular a pessoa com suas contradições (convertendo-o em um discípulo de Aristóteles), quando tenta fazê-lo assinar embaixo do que disse. Como desconhecer a polifonia do discurso se sustentamos a ausência da metalinguagem? Então, se existe uma “linguagem infantil”, essa é falada por crianças e adultos na mesma medida.

Considerando a enorme investigação de Giorgio Agamben[11] sobre como o termo “responsabilidade” se deslocou do campo jurídico para o terreno da ética, contaminando-o quase por completo, e observando a distorção linguística que demonstra que o ato responsável (organizado a partir da fórmula spondeo)  é um ato estipulado por um procedimento jurídico (o que tira toda a nuance heróica do “fazer-se responsável”), cabe perguntar-nos se, por acaso, a psicanálise lacaniana em geral e a psicanálise lacaniana com crianças em particular não terão sido vítimas do mesmo deslizamento.

Post-scriptum:

Faz algum tempo fiz pública uma ideia que me parece mais uma conclusão lógica de um trabalho de estudo que uma opinião qualificada pela experiência: propus que a clínica psicanalítica lacaniana com crianças é a melhor entrada na prática para os analistas novatos e justifiquei tal afirmação a partir de uma característica importante que a diferencia das outras clínicas. A clínica psicanalítica lacaniana com crianças apresenta certas exigências que não podem ser resolvidas com os recursos da doxa psicanalítica, no sentido comum ou a intuição.

Assim como com tanta facilidade se desloca a noção de “sujeito” para a de “pessoa” – o que permite quase diariamente afirmar que “um sujeito do sexo masculino assiste à entrevista…” – nos casos em que proliferam personagens de carne e osso, afirmar que a criança “é” o sujeito acaba por ser tão pouco prático como fundamentado. Então, o mesmo dispositivo de “presença de pais/parentes” favorece que o analista deva refletir sobre o estabelecimento do sujeito, o que – inevitavelmente – deve ser abordado como o assunto sobre o que se fala desde todas as posições enunciativas que participem do processo.

Mas também, assim como ao receber um paciente adulto um analista pouco advertido poderia facilmente confundir seu pedido de análise com uma demanda, os pedidos que recebemos de e pelas crianças são algo mais complexos. Pedem adaptação à ordem social (nos casos de problemas de conduta) ou à norma etária (quando algo não ocorre a tempo, ou se estende mais tempo do que deve). Há ocasiões em que pedem que julguemos as funções parentais, então… Não resulta absolutamente necessário propor um estudo sério do assunto para poder estabelecer se acaso aparece uma demanda de análise?

Resumindo, a criança é analisável se os psicanalistas se mostram dispostos a estudar os problemas que a dita clínica gera. Deve-se levar em consideração que não se trata de uma “especialidade”, nem de dissolver a criança em uma generalizada clínica do sujeito – o que termina por não ser efetivo e contradiz o espírito da psicanálise lacaniana. Trata-se de uma clínica que exige grande flexibilidade técnica, tanto como um enorme trabalho de reflexão teórica. Mas também, trata-se de um campo que Lacan qualificou como uma “fronteira em que se oferece à análise o mais desconhecido por conquistar, no qual seu ideal de compreensão pode encontrar seus efeitos mais humanizantes”[12].

O resto é nossa responsabilidade: a dos psicanalistas.

Notas:

[1] v. PEUSNER, P. Fundamentos de la clínica psicoanalítica lacaniana con niños – De la interpretación a la transferencia. Buenos Aires: Ed. Letra Viva, 2006, p. 13-14.

[2] LACAN, J. (1966) Presentación de la traducción francesa de las Memorias del Presidente Schreber. In: LACAN, J. Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Ed. Manantial, 1988, p.31-32.

[3] Como exemplo dessa tese, ver ROSENBERG, A. M. S. (comp.) El lugar de los padres en el psicoanálisis de niños. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1995.

[4] LACAN, J.; CÉNAC, M. (1950) Introduão teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

[5] LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 592.

[6] LACAN, J. (1936) Para-além do “Princípio de realidade”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 85.

[7]Ibid., p. 87.

[8]PEUSNER, P.op.cit., especialmente capítulos II a V.

[9] LACAN, J (1953-1954) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, p. 250, aula de 02 de junho de 1954.

[10] Ibid., p. 262, aula de 09 de junho de 1954.

[11] AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.

[12] LACAN, J. (1953) Estatutos propuestos para el Instituto de Psicoanálisis. In: LACAN, J. Escisión, Excomunión, Disolución / Tres momentos en la vida de Jacques Lacan. Buenos Aires: Ed. Manantial, 1987, p. 37.

Sobre o Autor:

Pablo Peusner é psicanalista, autor de Fugir para adiante: o desejo do analista que não retrocede ante as crianças, publicado pela Agente Publicações em 2016.

E-mail: pablopeusner@gmail.com
Blog: http://elpsicoanalistalector.blogspot.com.br/