Riverrum, twolips, chaosmos, laughtears, funferall ou ainda, full of grease, making loof, mais do que isso, soundsenses ou, na impossibilidade da leitura: babadalgharaghtaka….

Palavras postas e impostas sonorizam e ecoam ao serem pronunciadas, clamam para serem lidas em alta voz: riveRRum, river-run, rHiver Un, Ri- Ver- Um… Riverrum provoca os ouvidos, chacoalha o sentido, atordoa o significado, esvazia as possibilidades, pluraliza as associações, enoda e desenoda e termina por pulverizar-se ao vento…

Riverrum chama ao OUVER

[1]! Importa as lembranças impostas dos idiomas conhecidos: inglês, francês, português e exporta ao unheimlich, ao estranho, ao desconhecido: do corre o rio (river run) ao ri(o) ver um (Ri- ver- um) é uma correnteza de palavras, em sua imagem sonora, são as águas doces desembocando em uma cachoeira indeterminada em sua queda.

Riverrum… palavra, palavra, palavra…

É disto que James Joyce se alimenta em sua produção literária: palavras. Com sua escrita enigmática convida o leitor a se debruçar em um mal-estar inevitável. Sua escrita corta, recorta, impõe e decompõe, faz lugar de litoral ao se transformar em literal. Ressalto aqui o tema do litoral. As águas em seu encontro com a terra arenosa das bordas dos rios desenham formas diversas conforme a correnteza, ora uma marca ondulatória é rasurada, noutra uma linearidade infinita, ora então, bordaduras pontilhadas, enquanto noutras rachaduras e sulcos são os adornos erosivos. O rio corre e marca o litoral de formas diversas, às vezes, pelo literal. As palavras de Joyce ficam ecoando e cintilando após sua apresentação, aparecem e desaparecem e retornam pelos rastros que deixam. Palavras transmitidas pela imagem acústica que navega na fala através dos efeitos da voz, da fonação.

Este foi um dos pontos pelo qual Lacan, psicanalista francês, se deixou ser interpretado por Joyce. Ou como bem disse Jacques Aubert, recuperando Lacan, Joyce se encontraria em seu caminho. Nele Lacan tropeçou…

Finnegans Wake (1939), último romance de Joyce é uma exímia mostração do uso que faz com as palavras. Finnícius Révem, como proposto na tradução dos irmãos Campos, é seu livro dos sonhos, da noite, enquanto seu Ulisses é do dia, de um dia. Joyce é um riocorrente que convida ao seu júbilo- joy- joissance (gozo)- em seu uso da palavra que faz despertar (Wake). Finnícius Révem é o livro dos sonhos que desperta a cada linha, a cada letra mostrando que as palavras devem ser usadas, amassadas, mascadas, reviradas, torcidas, emaranhadas e jogadas fora, enxovalhadas. A palavra é potencializada e, imediatamente, refratada e descartada, justamente porque outra palavra segue na correnteza… rio- júbilo! A primeira palavra de seu révem é a última de seu finnicius, Seu romance começa e termina pelo riocorrente, um tsunami circular em águas adocicadas. Este é o efeito de Joyce: um fenômeno da natureza que corta salgando o corpo e ao buscar uma recuperação das partes dilaceradas a brandura das águas cristalinas vagueia em outra direção. Ao capturar algo de sua escrita escapamos junto com a (im)compreensão.

Lacan em seu passeio, de um dia, com Joyce- Ulisses- e no seu mundo dos sonhos- Finnicius Révem- pinçou os neologismos, as palavras-valise e os encantamentos de uma polifonia translinguística que foi amassada e emassada desde seus primeiros escritos. O estilo joyceano trouxe, segundo minha leitura, ao menos, quatro pontos para o ensino de Lacan, a saber:

O uso das palavras, que sofrem reviramentos chegando à sua mais intensa radicalidade, bailando com os sentidos e pluralizações, esgarçando o significante até sua pulverização. O conceito de letra em Lacan bebeu da fonte joyceana, deslizou na correnteza que partiu de um uso extremado e foi jogado no lixo, saiu da literatura e se transformou em lituraterra, obedecendo a inversão e a aliteração. Litura- rasura, borradura, risco; do sentido ao sem-sentido… Joyce é dado a não -se –ler;

O que impressiona é que da letter ao litter joyceano, em outras palavras, como ele se serve das letras enquanto palavras e cartas para gastá-las em seu uso, até delas não mais precisar, então, vão para o lixo e delas o rastro permanece, como na metáfora do litoral-riocorrente.

Assim a palavra-valise joyceana marca um conflito, faz função de palavra-metáfora, palavra ideograma. Como um espelho-instante riverrum é verbivocovisual[2] de toda a obra, mostra seu ritmo em seu fluxo envolvente e contínuo. Desta maneira, Joyce exprime estados mentais em palavras, mergulha diretamente no inconsciente do sonhador- révem- rêve. Esta construção é recheada de palavras que parecem ter a estrutura de neologismos (invenção de palavras novas, inexistentes) ou que se constituem como palavras-valise, que se caracterizam pelo embrulho de duas em uma só. Lacan se interpreta nesta lituraterra joyceana e depreende sua escuta clinica no universo polifônico de Joyce.

Um segundo aspecto, não hierárquico, tampouco, menos prevalente, é o uso frequente das epifanias. A escrita, sobretudo do jovem Joyce, está recheada e bordada pela certeza emanada dos fenômenos epifânicos. Um desses exemplos é a cena no conto Os mortos, da esposa de Gabriel ao topo da escada embalada pela musicalidade do tenor. O encanto do marido pela esposa toma as penúltimas cenas, um desejo sexual inesperado surge e a espera de uma linda noite amorosa tende a ser construída nas ultimas páginas do texto, enquanto isto, “Ela pára na escada. Gretta lá está e fica siderada pela música pronunciada e numa epifania traz o morto jovem de sua juventude apaixonada. A música traz o morto que mata Gabriel!” [3].

Joyce constrói a ideia do que poderia ser a epifania: uma súbita manifestação espiritual, seja pela vulgaridade da fala ou do gesto, seja em uma memorável fase da própria mente. Eis sua aposta com Stephen Hero.

Pois é, a morte ronda Gabriel na presença do morto, em seu Dublinense. Ou ainda, ele morre na presença-ausência do morto que vive na voz da amada. Gretta vivifica o morto ao lembrar-vê-lo pela sonoridade, pelas palavras, pela cena imagética… epifanicamente.

Joyce, escritor inventivo em seus detalhes, explora os símbolos em cada cena, suas imagens e suas palavras em: Ó ye dead (ó vós os mortos) ele mostra que os mortos debocham dos vivos… o discurso do vivo é sempre um fracasso! Gabriel já sabia sem saber que sabia disto, mas somente foi aplacado pela certeza epifânica de Greta.

Um terceiro ponto, se assim posso chamar, é a presença do não-se-ler na escritura joyceana, não obstante, passa-se por sua experimentação e sensação. As letras deslizam nas linhas e constroem uma junção inexplicável e incompreensiva, obedecendo o ritmo, a melodia, a sonoridade e a fonação, (in)vocalizam algo que funciona como uma lalação, sem endereçamento. Esta é uma conversa precisa e cirúrgica com o que Lacan construiu subvertendo a língua, a linguagem jakobsoniana e saussuriana (do curso de linguística).

É a lalíngua, em uma palavra só, segundo tradução de Haroldo de Campos que eclode e explode em Joyce.

“… ao fim e ao cabo, o escrito como impasse-a-ler (pas-à-lire) é Joyce quem o introduz, eu faria melhor dizendo: o intraduz, pois, ao fazer com a palavra trato de tráfico (triate: trajeto, transporte, acto de negociar por meio de letra de cambio…) para além das línguas, ele não se traduz senão apenas de ser portodaparte igualmente parco-a-ler” (Haroldo de Campos traduz posfácio do livro 11- 1973)[4]. Lacan traz à tona uma passagem de seu mergulho em Joyce.

Joyce mostra sua língua materna, idiomaterno, lalíngua, língua tensionada pela função poética, visto que o inconsciente é feito de lalíngua. Joyce o mostra a céu aberto, lalação embebida de cantarolia e multiplicidade de idiomas: o inconsciente é um saber fazer com lalíngua, este idiomaterno nos afeta com efeitos que são afetos. Joyce é pura afetação! Em sua lalíngua mostra que os sentidos devem ser abolidos e pulverizados, os significantes apenas recheiam os significados.

Uma quarta embriaguez é tecida no encontro com Stephen Dedalus. Em muitos de seus textos Joyce assinou pelo seu heterônimo, Daedalus, que homofonicamente remete à deed e à dead. Joyce careceu do Nome-do-pai, não conseguia falar em nome próprio que o autorizaria em sua subjetivação. Para não sucumbir usou sua escritura como uma forma de se enlaçar ao mundo, como uma forma de enodamento dos registros soltos de sua posição enquanto sujeito. De seu desenlaçamento construiu um nome, Stephen Dedalus-Joyce e publicou, fez enodamento. Pelo seu sintoma, fez sinthoma. Lacan o nomeia: Joyce, o sintoma em uma frase só. O sinthoma- o santo homem e ao mesmo tempo o pecado-sin.

Joyce faz um nome, publica e seu texto vive, mostra o uso das letras, usa: palavras, palavras e palavras. Mostra em nós (duplo canto) sua lituraterra. Usa as palavras, sonoriza as letras e joga fora, elas vão pro lixo. Mastiga os vocábulos, recria as frases, concentra os idiomas, mescla as pronúncias, ritma, estica, puxa, joga…. Pulveriza sentidos em sua escrita e publixa, joga fora… nos mostra com os mortos que a morte está aí, mas o riverrum precisa ser encontrado nas águas de cada um.

Letter-litter…

Com seus cortes, fraturas do nexo esperado com finais abruptos, inesperados, disruptivos estonteia o leitor e o coloca a trabalhar, elaborar, construir e descontruir, o leitor mergulha em seu sem-tido e deixa-se cambalear em seus sentidos (tato, olfato, audição, visão, gustação e desejo). Sem- tido tempo o sentido retorce em si, em uma explosão de sentidos e em seu mais inteiro esvaziamento. Joyce quebra, deixa cair produzindo seus rastros em nós!!! E o rio corre…

 

Notas:

[1]! Importa as lembranças impostas dos idiomas conhecidos: inglês, francês, português e exporta ao unheimlich, ao estranho, ao desconhecido: do corre o rio (river run) ao ri(o) ver um (Ri- ver- um) é uma correnteza de palavras, em sua imagem sonora, são as águas doces desembocando em uma cachoeira indeterminada em sua queda.

[2] A poesia concreta introduz esta palavra ao propor a amarração do som, da visualidade e do sentido das palavras.

[3] JOYCE, J. Dublinenses. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

[4] Ibid.

 

Sobre o Autor:

Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP, membro da EPFCL-BR, membro do Circuito Ponto de Estofo – MC, pós-doutora em Psicologia Clínica – USP, doutora em Ciências Médicas – UNICAMP, autora de diversos artigos e livros, entre eles: Vergonha. Coleção Emoções. Revista Mente e cérebro. (Ed. Direto, 2010); A pele como litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise – organizado com Christian Dunker e Heloísa Ramirez, (Annablume, 2011) e A construção de casos clínicos em Psicanálise, em parceria com Christian Dunker e Heloísa Ramirez (Annablume, 2018).

E-mail: tatianaassadi@gmail.com