Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria, do que eu quisesse ter. Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é o que me faz viver (Gilberto Gil)

Escrevo este texto ainda sob o impacto do ensaio da escola de samba do qual participei ontem à noite. Em meio a tantas contradições envolvendo o que atualmente são as escolas de samba, não tem jeito: quando a bateria começa a esquentar os tamborins, sou atravessada por uma espécie de transe que me leva a outro espaço/tempo. E, então, aparecem as mulheres do samba: a passista, a porta bandeira, a menina da ala das crianças, a baiana, a senhora da velha guarda, as ritmistas e a rainha da bateria. Nessa hora, os pensamentos e sentimentos contraditórios atingem um grau mais elevado e se alçam à dignidade do paradoxo. Fiquei observando aquelas mulheres enquanto as fotografava, tentando capturar algo daquela dignidade que me atinge com força, apesar de me ser estrangeria e quase inalcançável.

Descendentes de escravas, miscigenadas, mulatas, mamelucas e meio malucas: a história das mulheres do Brasil desfilando num transe frenético diante de meus olhos marejados e meu coração disparado. Impossível não me lembrar do argumento acadêmico de um colega a quem admiro e respeito, declinando em tom crítico e com perfeita lógica aristotélica os problemas éticos do que se tornou o carnaval no Brasil: escolas de samba tendo que decidir entre o patrocínio do crime ou das empresas (se é que há alguma diferença entre ambos), lavagem de dinheiro, promiscuidade entre público e privado e as mulheres reduzidas a objeto de consumo para gringo. Assim como em relação ao futebol, melhor tomar distância, manter a coerência, não nos misturarmos com esse tipo de coisa e dormirmos em paz com nossa consciência de intelectuais marxistas. Ah! Como meu lado homem concorda com esses argumentos e me atormenta com pensamentos autocríticos, enquanto simultaneamente penso também com meus pés, que se movem intuitivamente ao ritmo do samba enredo e meu quadril balança movido pelo sangue negro que corre em minhas veias; e dou gracias a la vida por ser brasileira e estar “vivendo esse momento lindo”! E num átimo de segundo, sou afetada por um saber que de acadêmico não tem nada; e sinto na pele o enodamento da vida, do corpo e da linguagem, e experimento visceralmente uma satisfação que – como não reconhecer – tem um “quê” de sexual, mas não é de todo sexual, porque pulsa por cada poro, transpirando beleza e coragem, e vibra cada pelo e inspira uma espécie de sublimação transcendental.

Fiquei pensando na vida de cada uma daquelas mulheres do samba e, enquanto as admirava, invejava e cobiçava, era inevitável afastar de todo a vozinha do grilo falante soprando em meus ouvidos aquele mantra da mulher objeto de consumo. Enquanto sambava tentando pretensiosamente imitar uma passista, me lembrava do meu sogro, na década de noventa: um homem verdadeiramente católico e muito ético. Durante o carnaval era quando se travavam nossos mais interessantes duelos fálicos, mentais, argumentativos e lógicos. Não sem amor. Nós nos amávamos. O cristão verdadeiro e reto versus a aspirante a psicanalista e pseudo feminista que, acreditem, concordavam muito mais do que se poderia supor. Conservador que era, apresentava argumentos dialeticamente feministas para se posicionar contra as escolas de samba: as mulheres nuas, sendo expostas daquele jeito na televisão, um festival de peitos e bundas reduzidos a objeto de consumo para gringo. Não sou eu que repito a frase. É que a frase do meu sogro católico e do meu amigo acadêmico de esquerda é exatamente a mesma! Nos anos noventa, meu lado homem cristão universalista e dialeticamente moralista já concordava com meu sogro, mas mesmo assim eu passava a madrugada assistindo ao desfile e, é claro, torcendo pra Mangueira – que, à época, proibiu a “genitália desnuda” durante o desfile. E meu lado homem marxista universalista continua concordando com meu amigo acadêmico bem resolvido com sua culpa ateia. Mas… ça n’impêche pas d’exister.

Vamos então falar sobre a dignidade do paradoxo? Será, realmente, que a única saída para as mulheres não serem tratadas como objeto de consumo local ou estrangeiro – o que, por favor, não é o mesmo que objeto de interesse sexual, ou tesão, se preferirem – é esconderem seus corpos e só os movimentarem de modo considerado decente? Ora, esse raciocínio apolíneo e aristotélico, se levado ao extremo, chegará à burca que, no fundo, nada mais é do que uma espécie de hipérbole do respeito à mulher; um modo cultural de afirmar que mulher não é “só” corpo. Ora, ora, ora… eis a contradição, nossa velha companheira de insônia aparecendo de novo quando menos esperamos, atravessando o ritmo do samba e nos fazendo perder o rebolado. Mas, afinal, por que é mesmo que as mulheres não podem mostrar os corpos que têm? Por que precisam se restringir ao logos para serem respeitadas, amadas e mais, ainda, terem sua escolha levada em conta na hora da verdade do encontro entre corpos sexuados, seja lá o modo como gozem? Por que não podem, elas mesmas, sentirem tesão com seus corpos? Porque não podem querer despertar o tesão do outro ou da outra? E por que sentir tesão ou querer despertar o tesão é interpretado – de modo assustadoramente comum – como a senha para o estupro? Haja Freud para ajudar a sustentar a pergunta – com o perdão do vocabulário chulo, entretanto extremamente preciso neste caso: “o que o cu tem a ver com as calças?”. Ah… o semblante! Quanto ainda nos falta para alcançar sua “não relação” com o real. Quanto à realidade, essa, é sempre uma montagem mais ou menos burlesca e falaciosa para escamotear o abismo que nos une e separa na maldição divina dos sexos.

E pra não dizer que não falei de Lacan, é urgente lembrarmos que uma de suas mais importantes intervenções na psicanálise foi justamente e ideia de que não se pode reduzir o corpo, enquanto espaço de gozo, ao objeto – isso, aliás, é o que fez a ciência moderna. Numa psicanálise – e quem já frequentou um divã sabe do que estou falando – somos confrontados, ao contrário, com a separação e a não coalescência entre os modos de gozo que o tamponamento do objeto pela fantasia realiza de forma precária e mal sucedida nas neuroses. Para o homem, operar essa separação é fundamental para não confundir a bunda com a saia e “deixar a menina sambar em paz”. Para uma mulher, operar essa separação implica uma experiência corporal inédita; eu diria, carnavalesca: na carne!

O fato de uma mulher ter um corpo – e, por favor, não estou falando de anatomia, há mulheres sem útero, sem ovários, sem trompas e com tromba – e de usá-lo e abusá-lo para fazer desejar e gozar, não quer dizer que ela esteja se oferecendo como objeto de consumo… Não podemos colocar na bunda da Anitta o que é da responsabilidade política e ética do discurso do capitalista. Ou você acha que porque usa seu terno Armani, ou reza o pai nosso, ou dá aulas na universidade está sendo menos consumido? No capitalismo atual, é sempre bom lembrar que há bundas e bundas, todas, entretanto, prontas não para serem comidas, mas para serem chutadas. Não é porque a Anitta tem uma bunda gostosa & com celulite (um pouco de lógica paraconsistente cai bem) que ela está se oferecendo para ser consumida e muito menos estuprada. Por outro lado, é bom se acostumar com a possibilidade de não gostar da música e da estética da Anitta & não achar que ela reforça o estereótipo de mulher objeto porque mostra a bunda (um pouco de lógica paracompleta cai bem).

O que as mulheres do samba e do funk nos ensinam a nós, homens brancos cristãos todos fálicos – marxistas ou não – é que há algo na mulher que escapa à razão universalizante, e que o corpo de uma mulher sempre resistirá a ser reduzido a um objeto, por mais que o discurso dominante se esforce para fazê-lo, porque ele é um misterioso corpo falante, desejante e gozante. É melhor se acostumar com isso! Para os homens, faço minhas as palavras de Chico Buarque: “ou tira ela da cabeça ou mereça a moça que você tem” – e acrescento: ou que você quer ter. Para as “não todas fálicas” com qualquer tipo de genitália – desnuda ou não –, com ou sem celulite, com ou sem adiposidades e menstruação, com ou sem silicone, recomendo um ensaio de escola de samba – não precisa ser a Mangueira, mas se der, melhor! – para vislumbrar algo do outro gozo… Ainda dá tempo!

Sobre a Autora:

Ana Laura Prates Pacheco é psicanalista. Fez sua formação acadêmica, especialização, mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e seu pós-doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Escreveu o livro Feminilidade e Experiência Psicanalítica.