O texto a seguir é um capítulo do livro Desterros: histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), da psiquiatra e escritora Natalia Timerman. O boletim PSI, com a devida autorização da autora, publica o texto por ocasião do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio.

QUANDO LOUCURA E VIOLÊNCIA SE ENCONTRAM

Nos primeiros meses de trabalho no hospital penitenciário, percebi que os pacientes psicóticos demoravam muito mais para melhorar quando os comparava aos que eu tinha visto nas enfermarias psiquiátricas de hospitais comuns. Talvez porque os medicamentos, de um lado, e a maconha e a cocaína, de outro, ajam em direções opostas – “Que entram, você sabe, né doutora?”, já escutei de alguns pacientes; de tantos outros, escuto que ali não tem nenhuma droga, o que me dá indícios de que quase tudo o que me é dito é selecionado de acordo com um código prévio que dificulta, senão impede, a formação de um vínculo terapêutico de confiança. Ou talvez porque a prisão seja, em si, de alguma forma, psicotizante. Daí ser tão difícil, por exemplo, distinguir se um paciente do seguro que diz estar sendo perseguido vive ou não um surto psicótico. Ou lidar com um paciente que teme um guarda ali fora à espreita, enquanto vemos, eu e ele, através da janela da cela, o vigia em ronda na torre de segurança – a única coisa que se consegue ver através da janela de algumas celas, além de pedaços de céu.

Difícil também é aprender a diferenciar sintomas “verdadeiros” de outros, simulados com o objetivo de obter um período de internação no CHSP [Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário]. É sabido que a população carcerária brasileira (com destaque, que não é nenhum motivo de orgulho, para o estado de São Paulo) é muito maior que o número de vagas disponível*. Mesmo os pacientes que não chegam a fingir estar escutando vozes inúmeras vezes imploram para ficar internados por pelo menos alguns dias. Eles contam que precisam dividir o colchão com vários outros presos e fazem turnos para dormir, ou que se sentem sufocados no meio de tanta gente, ou que fizeram muito esforço para parar de fumar por causa da tuberculose, mas não adiantou nada porque todos os outros presos fumam ao redor. Dentro do CHSP, não são raras as histórias de amostras de urina “emprestadas” de outro paciente, de sangramentos misteriosos ou de tentativas muitas vezes bem-sucedidas de aumentar feridas operatórias ou impedir sua cicatrização para retardar a alta do hospital. Houve até quem molhasse o dedo em glicose para simular diabetes descompensada por semanas a fio: a hipoglicemia causada pela insulina era preferível a voltar à unidade de origem.

A irrupção de crises de agitação psicomotora no CHSP às vezes se dá de forma bastante violenta e refratária aos remédios, notavelmente mais que nos hospitais psiquiátricos comuns. Isso pode acontecer porque o uso anterior e atual de álcool e drogas ilícitas, desenfreado, faz com que os remédios psicotrópicos tenham seus efeitos diminuídos, além de em alguns casos ser passível de causar distúrbios psiquiátricos. Ou pode acontecer também de o paciente já ter uma doença mental muito grave antes de ser preso; é possível que tenha sido ela mesma, aliás, que de alguma forma levou ao crime que causou a prisão. Seriam os pacientes psiquiátricos mais graves, então, os que estão presos – um exemplo disso é o paciente que foi preso, e então trazido ao CHSP, por ter sufocado outro até a morte, ambos já internados em um hospital psiquiátrico comum.

De situações violentas causadas por pacientes da psiquiatria no CHSP não faltam exemplos. Houve um sábado em que um deles, Douglas, um “pernoite” – paciente que passa em consulta, mas não volta no mesmo dia para a sua unidade porque não tem bonde –, depois de passar a manhã gritando e esmurrando a porta da cela onde estava, quebrou o registro de água, causando uma verdadeira inundação. Para chegar até a cela, tínhamos de atravessar com a água pelos tornozelos, mas a agitação era tanta que ninguém conseguia se aproximar ou sequer destrancar a porta sob risco ou certeza de ser agredido, e enquanto nos acumulávamos ali na frente – médicos, ASP [agente de segurança penitenciário], enfermagem –, impotentes diante de Douglas gritando e golpeando a porta, a água continuava subindo. A situação parecia cada vez mais sem solução, até que um agente de segurança inflou o peito, abriu a porta, enfrentou aquele homem e o algemou ao chão.

Em outra ocasião, cheguei em uma manhã de fim de semana à enfermaria de psiquiatria e vi uma porta caída no corredor. Demorei alguns instantes para entender o que ocorrera, e talvez só tenha acreditado mesmo na minha suspeita quando o enfermeiro me contou que Arnaldo, um paciente muito alto, muito forte, muito agitado, passara a noite esmurrando a porta com tamanha veemência que resultou naquilo, naquele batente vazio e naquela porta inútil no chão, a solda, o ferro e o cadeado tornados fracos, vencidos pela força daquela violência descomunal. Completando o absurdo da cena, o paciente que, por ser mais calmo, fora transferido temporariamente para a cela agora sem porta, “lavava” com água do vaso sanitário o piso, que supunha contaminado pelo paciente anterior. A pia, de louça, muito mais frágil que a porta de ferro, logicamente havia sido quebrada bem antes da porta.

*Segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), em 2014, a população carcerária do estado de São Paulo, de 219.053 pessoas, contava com 130.449 vagas, números que vêm piorando gradativamente: em 2012, segundo o InfoPen, a população carcerária paulista era de 190.818 pessoas.