O que entendemos por diversidade sexual? A diversidade sexual abarca todas aquelas preferências e condutas sexuais, tais como a orientação/escolha sexual e as identidades genérico/sexuais: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, identidades trans etc. O termo diversidade é contemporâneo e, poderíamos dizer, inclusivo, ainda que não desconheça a diferença, já que a etimologia da palavra contempla este viés: diversitas, divertere, girar em direção oposta. Concomitantemente, assinala o variado e o abundante: o diverso, distingue e inclui ao mesmo tempo, a contrapelo do que segrega, separa e discrimina.

A ciência nos impôs pensar a conduta dos seres humanos dentro daquilo que consideramos uma norma em termos estatísticos. Todas aquelas que saem dessa norma são, por definição, consideradas anormais. Esse é o caso das condutas sexuais que, apesar dos avanços realizados (políticos e sociais), muitos ainda concebem as orientações e as identidades em termos de anormalidade, sendo possível filtrar em seus postulados questões de índole moral e, inclusive, religiosa.

A medicina e a psiquiatria abordaram a questão das práticas sexuais durante os séculos XIX e XX, dando atenção especial à sua classificação em categorias nosológicas e diagnósticas, realizando uma discriminação. A preocupação, à época, consistia em circunscrever e diferenciar aquilo que não respondia às pautas sociais e sexuais, dando-lhe um estatuto clínico e científico. A medicina – posta a serviço do discurso do mestre – ordena e regula, assim como todo discurso, os gozos. Dessa maneira, produz-se uma apropriação, pelo discurso científico, de algo que se referiria ao singular e particular do sujeito; um uso do saber sobre os prazeres sexuais, em termos foucaultianos. São conhecidos os trabalhos de Krafft-Ebbing, Moll e Haverlock Ellis, entre outros, interlocutores de Freud durante seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), em que se falava de inversões e desvios de uma meta sexual normal, qual seja, o coito heterossexual, acrescento, vaginal, com fins reprodutivos. Como bem esclarecia Freud, o uso de outras mucosas, conceitualizadas por ele como zonas erógenas, também caía sob a rubrica de condutas sexuais desviantes e perversas. Depois de uma exaustiva descrição e tendo conceitualizado as noções de pulsão e objeto, o próprio Freud questiona a escolha de objeto heterossexual como paradigma da normalidade. Expressa-o assim na nota acrescentada em 1915:“[…] no sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento […]”[1]. Ao mesmo tempo, Freud, na constituição considerada normal, localiza moções perversas, no sentido daquilo que pode ser concebido como um desvio da norma sexual. A noção de perversão como estrutura clínica distinta (da neurose e da psicose) não estava presente na nosografia freudiana, e sim que essas condutas sexuais pervertiam, ou melhor, perturbavam, aquilo que era a ordem estabelecida das coisas.

Freud retifica a medicina vitoriana com a criação da psicanálise enquanto prática que, longe de normativizar, dá palavra e voz ao sintoma silencioso e dissidente, que não respondia à positividade da época; assim o testemunhavam as primeiras histéricas em seus atendimentos. O discurso analítico, desde sua criação, se oferece como resistência a certos ordenamentos classificatórios e universalizantes e, enquanto tal, segregativos. Conforme vínhamos afirmando, esses discursos ordenavam, discriminavam e diferenciavam o que era normal daquilo que era mórbido/patológico em termos sexuais. O discurso do analista vai no sentido da diferença, considerando que essa se estabelece em termos de desejo e gozo, ou seja, a diferença singular que concerne a cada falasser e que o institui em um registro de heteridade, de outridade, conforme a tese que sustenta Antonio Quinet em seu texto[2]. Em outras palavras, trata-se de um saber totalizante que pretende sustentar que todo gay, toda lésbica, todo trans, em termos de gozo e de desejo, responderiam da mesma maneira. Esse seria um ordenamento do saber sobre o sexo ao modo da escala de Kinsey, e não ao modo da psicanálise que, como afirma Lacan em O avesso da psicanálise, põe o saber, enquanto totalidade, na berlinda, tornando-o duvidoso[3] e se ocupa, como vínhamos afirmando, da diferença em termos de gozo no singular, deixando o saber do lado da verdade em um meio dizer, ou podendo dizer dela somente pela metade.

Incrivelmente, parecem voltar aos nossos horizontes velhas práticas discursivas baseadas nos suportes segregativos da medicina clássica e aos quais a psicanálise não é alheia. Assistimos ao que Lacan, em 1967, vaticinava como “[…] ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”[4]. Colette Soler[5], a propósito da segregação, afirma que é “uma maneira de tratar o insuportável, o impossível de suportar”. Aquilo que não se suporta e, por isso, busca-se eliminar é o que é diverso, que não responde à lógica do Um, do para todos própria do universal; lógica que sustenta todas as formas de racismos e de totalitarismos, em que o outro diferente e diverso – seja em sua raça, em sua classe social ou seja em termos de suas escolhas e identidades sexuais – deve ser eliminado a fim de se sustentar o ideal imaginário do Um, à maneira do líder de Psicologia das massas. Como respondem a psicanálise e os analistas à diversidade sexual da época? Incluem ou segregam?

A pergunta que nos une nesta mesa poderia ser, para muitos, anacrônica, mas é preciso trazê-la à tona novamente, já que não é tão óbvio considerar que, dadas as conjunturas atuais em relação à diversidade sexual, os analistas unam seu horizonte à subjetividade da época. Bem ao contrário de Função e campo[6], muitos não estão dispostos a renunciar a sua posição que pode se tornar segregacionista, camuflando seus próprios preconceitos entre a lógica do discurso universitário e a do mestre, colocando em marcha a maquinaria do saber em teorias universalizantes que estão longe do discurso analítico, o qual aponta a uma verdade e singularidade outras, distintas e opostas ao universal que sustenta a norma. Normal, no discurso dominante, gostaria de traduzi-lo da seguinte maneira: para todo homem, uma mulher; para toda mulher, um homem; para todo homem, o pênis; para toda mulher, a vagina – fazendo do atributo do órgão a diferença sexual da heteronorma, que devemos distinguir da diferença sexual que a sexuação estabelece em termos dos gozos na psicanálise.

A boa norma, paradoxalmente, para Lacan, é a norma mal ou a norma-macho, conforme a homofonia em francês norme male com a qual brinca em O aturdito[7] quando faz ironia com o normal da neurose. Essa é a versão do Um e do Mestre que pode aparecer na psicanálise; fora dessa, perversões ou algo que escapa da borda que a neurose vem garantir. Colette Soler, em seu texto já citado sobre a segregação, pergunta se, por acaso, a psicanálise como discurso pode eludir a segregação. Ela defende a tese de Lacan de que todo discurso, enquanto tal, discrimina, no sentido que institui uma ordem sobre os gozos, mas, ao segregar, cria um dilema teórico. Não obstante, ela faz uma aposta, aproximando uma resposta, cito: “o discurso analítico pretende escapar da segregação pela via do um por um”[8]. A fim de colocar os pingos nos is: do lado discurso do mestre, trata-se de um Um, de um S1 que busca apagar toda diferença e heteridade, de maneira totalitária e segregativa, chegando, inclusive, à eliminação do outro, a ponto tal que, na Argentina, aumentaram em 85% os crimes de ódio contra lésbicas, gays, travestis e transexuais. Muito pelo contrário, do lado do discurso do analista, trata-se de situar o diferente, o singular e a heteridade (entendida como outridade) de cada ser falante. Nesse sentido, não deixa de lado ninguém; o diferente e diverso da sexualidade é incluído e tomado na particularidade do gozo e do sintoma de cada um.

Notas:

[1] FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. VII, p.138.

[2] QUINET, A. Homofobias psicanalíticas. In: DAQUINO, M. (org.) A diferença sexual: gênero e psicanálise. São Paulo: Agente Publicações, 2017, p.29-41.

[3] LACAN, J. (1969-1970) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, pp. 28 e 29.[2] LACAN, J. (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.263.

[4] LACAN, J. (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.263.

[5] Cf. Soler, C. (1996) A propósito de la segregación. In: Incidencias políticas del psicoanálisis/ 1. 45 textos, ensayos y conferencias. Barcelona: Ediciones S&P, 2011, p.415.

[6] Cf. LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.238-324.

[7] LACAN, J. (1972) O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.480.

[8] Soler, C. (1996). A propósito de la segregación. En Incidencias políticas del psicoanálisis/ 1. 45 textos, ensayos y conferencias. Óp. Cit. Pág. 415.

Sobre o Autor:

Mariano Daquino é psicólogo, psicanalista e professor.
Escreveu o livro A Diferença Sexual: Gênero e Psicanálise.

Tradução:

Maria Claudia Formigoni