Não vou agradecer aos organizadores destas jornadas por ter sido convidado, mas agradecerei pelo fato de organizarem jornadas nas quais o tempo de exposição das comunicações é mais ou menos o mesmo que o tempo do debate com o público. Existe na atualidade uma crise importante de paradigma que sinaliza a necessidade de (des)construir o conhecimento de maneira coletiva, a partir do diálogo de saberes e, acima de tudo, entre os saberes profissionais e em primeira pessoa.

A minha intenção é propor uma reflexão crítica sobre a reabilitação a partir daquilo que observo na Espanha (desde 1990), no Brasil (meu país de origem) e na Argentina e sobretudo a partir de meu trabalho como formador e supervisor de profissionais, condição essa que possibilita uma certa visão panorâmica de algumas encruzilhadas e dificuldades.

Certamente há muitas possibilidades de abordar esta reflexão crítica, porém escolhi fazê-lo desde um enfoque vincular. Aliás, como terapeutas reabilitadores, ou facilitadores da recuperação, penso que nosso olhar deveria focar-se nos vínculos que a pessoa tem e estabelece em seu contexto familiar, os vínculos mútuos conosco, os profissionais, com sua comunidade mais próxima e, também, os vínculos com a equipe e entre as equipes etc.

O universo ou rede de vínculos de cada indivíduo irá determinar em grande parte sua identidade, os papéis ou funções que assume, seus modos de integração comunitária ou de “estar no mundo” etc., isso em muitos níveis.

Por exemplo, em algumas instituições (sobretudo aquelas que são pautadas de uma forma mais radical pelo modelo biologicista) é comum observar muitos pacientes que passam o dia com “o olhar perdido”, quer dizer, olhando o vazio e, às vezes, até falando sozinhos. Isso parece se dar, sobretudo, porque nestas instituições estes pacientes não são olhados de forma significativa nem significante (o estereótipo seria o psiquiatra que não olha para os pacientes quando fala com eles… e, se olha para eles, não os enxerga enquanto sujeitos). Ao não serem olhados, estes pacientes não têm para onde olhar… seu olhar se perde. É interessante observar que este tipo de sintoma ou manifestação, supostamente próprio das entidades patológicas destas pessoas, desaparece ao mudar apenas o contexto vincular. Por exemplo, quando vão a outro tipo de dispositivo residencial no qual são olhados e enxergados como sujeitos e onde se fala com eles levando em consideração sua subjetividade.

Portanto, tudo indica que muito do que diagnosticamos como defeitos, dificuldades e sintomas individuais próprios da patologia, próprios da psicose etc.,deveria ser pensado antes em termos de Sintomas Vinculares. Ou seja, realidades que se configuram vincularmente, mas que são apresentadas sem levar em consideração essa procedência vincular.

A partir de um enfoque vincular, não se trata mais de um Sujeito observador neutro que observa e descreve um Objeto objetivado, com seu diagnóstico e defeitos. Trata-se, antes, de enfocar o vínculo entre sujeito e objeto como elemento fundamental na estruturação dos fenômenos com os quais iremos nos deparar.

Portanto uma concepção vincular implica a todos (familiares, usuários, profissionais, comunidade) em maior medida como promotores corresponsáveis pela sintomatologia, estados de alienação, manifestações da cronificação etc….e pela recuperação e a saúde, se for o caso.

Dito de maneira positiva, todo processo de tratamento, reabilitação, deveria dedicar-se, entre outras coisas, a fazer diagnósticos vinculares e, a partir disso, procurar estratégias para potencializar a recuperação ou então mudar as configurações vinculares que fomentam a patologia, dependência, cronificação, estereotipia, alienação etc.

Ultimamente vem sendo criticado o uso das categorias diagnósticas. Aqui a proposta seria passar do diagnóstico individual ao diagnóstico vincular: é mais justo, mais ético e terapeuticamente mais eficaz.

Searles foi um psiquiatra que praticava a psicoterapia intensiva em um hospital psiquiátrico. Em uma passagem comenta que “uma mulher paranoide me deixou furioso durante muitos meses, também ao pessoal da sala e às outras pacientes, com uma atitude arrogante que parecia expressar que se considerava dona de todo o prédio, como se fosse a única pessoa cujas necessidades deviam ser consideradas. Essa conduta desapareceu somente quando pude perceber a semelhança desagradavelmente estreita entre sua tendência de abrir ou fechar as janelas da sala comum segundo seus desejos, ou ligar e desligar a televisão sem levar em conta os demais, e o fato de que eu entrava tranquilamente em seu quarto, apesar de seus persistentes e ruidosos protestos, levava minha cadeira de armar, geralmente fechava as janelas, que ela preferia abertas, e deixava-me cair na minha cadeira: em síntese, comportava-me como se eu fosse o dono de seu quarto.” (SEARLES, 1966, 123s).

Cabe destacar que com a mudança da atitude do terapeuta o sintoma vincular “da paciente” desapareceu… e sem psicoeducação, sem treinamento de habilidades sociais. Em todo caso, teríamos que falar da psicoeducação vincular ou do treinamento de habilidades vinculares.

De modo geral é mais difícil detectar estes sintomas vinculares em outros profissionais, outras equipes, outras instituições e escolas. Mas são coisas que acontecem a todos os profissionais e equipes. As possíveis mudanças somente se produzem a partir do reconhecimento próprio, como no caso do Searles. Porém, é inevitável a dificuldade que temos de reconhecer estas situações e, portanto, a utilização dessa “metodologia de desmontagem de sintomas vinculares” demanda, além de formação, a supervisão externa da equipe.

Via de regra tendemos a operar desde a imagem de um profissional ideal que, entre outras coisas, seria um profissional que não estabelece vínculos alienantes, não cronifica etc. Gostaria de mencionar que o bom profissional não é aquele com quem não acontecem estas coisas. O bom profissional, a boa equipe é aquela que dispõe de recursos para perceber que estas coisas acontecem.

Não cabe pensar que os sintomas vinculares operam exclusivamente desde os vínculos entre pessoas; trata-se de algo que costuma ter relação também com a cultura de determinada equipe ou instituição e até com a cultura de um modo geral.

Ou seja, poderíamos nos perguntar quais são algumas das manifestações típicas das pessoas com problemas de saúde mental na atualidade, e a partir disso diagnosticar os sintomas vinculares de nossa época.

Assim, vou propor uma brincadeira que consiste no seguinte: tomemos um déficit ou dificuldade típica que costumamos atribuir a pessoas com diagnóstico psiquiátrico. Desde esse ponto de partida, pensemos qual seria o possível diagnóstico vincular (pensando em nossa possível implicação), e depois, o que “receitaríamos” para tentar melhorar o que foi diagnosticado.

Por exemplo, vamos pensar em um diagnóstico associado de deficiência intelectual em pessoas com psicose. Para mim tanto faz os resultados dos testes psicométricos. Na minha prática profissional já vi muitos diagnósticos de deficiência intelectual associado se desmontarem, fato que me faz pensar que, em muitos casos, o deficiência intelectual é mais um sintoma vincular e mais, até diria que é um sintoma vincular bastante frequente em nossa época.

Se for então um sintoma vincular teríamos que pensar em nossa possível implicação nisso. Penso que em nossa cultura há uma tendência mais ou menos generalizada de perceber as pessoas com diagnóstico psiquiátrico como se tivessem deficiência intelectual. Se perguntarmos isso aos profissionais, a maioria dirá, desde o discurso, que não é o que acontece. Porém, se formos ao âmbito das práticas em reabilitação, às vezes acontece que a estrutura, o enquadramento e a tarefa de determinadas oficinas, com efeito, têm a estrutura de oficinas que seriam mais apropriadas para pessoas com deficiência intelectual.

O problema é que muitas pessoas com problemas de saúde mental não se desligam desse vínculo alienante e acabam assumindo essa identidade que lhes é dada de fora. Logo, esses pacientes acabam sendo cobaias para os supostamente objetivos testes psicométricos e estudos baseados em evidências, os quais não teriam dificuldades em demonstrar a objetividade dos sintomas e déficits do paciente, exatamente ali onde nós diagnosticaríamos sintomas vinculares.

Uma vez concluído o diagnóstico vincular, há que dar conta do “tratamento”. Em uma situação assim, eu prescrevo aos profissionais mais formação (no modelo vincular) e supervisão externa das equipes…e talvez também recomendaria deixar de lado os testes psicométricos.

Partindo deste modelo, poderíamos continuar brincando de desconstruir sintomas individuais para fazer diagnósticos vinculares e depois prescrever o tratamento. Devido à limitação do tempo e de espaço, somente vou sugerir alguns “diagnósticos” individuais como ponto de partida:

As pessoas com diagnóstico têm uma atitude infantilizada (qual seria o diagnóstico vincular?)

As pessoas com diagnóstico não têm desejo/motivação e por isso não vêm às oficinas.

Quando vêm, as pessoas com diagnóstico não participam.

As pessoas com diagnóstico não respeitam as normas.

As pessoas com diagnóstico tendem à cronificação e à deterioração.

Se eu tivesse que traçar um eixo para refletir sobre todas essas questões, diria que o pato-lógico[1] tende a perceber a vaca-louca como aquela que supostamente é o negativo dos nossos ideais.

Ali onde o ideal do pato-lógico pretende ver e ser visto como aquele que sabe e pode, haverá uma maior tendência a perceber a vaca-louca como aquela que não sabe nem pode. Daí toda a problemática, entre outras coisas, como a do assistencialismo e o pedagogismo na reabilitação e na Saúde Mental em geral.

Por exemplo, é interessante observar nos relatórios de avaliação que redigimos que, de modo geral, fazemos referência quase que exclusivamente aos déficits, sintomatologia e dificuldades dos usuários. Quase não são mencionados seus aspectos positivos. Por outro lado, nos congressos e publicações observamos o contrário: destacamos aquilo que fazemos bem e quase não mencionamos o “negativo”, as dificuldades, a imperícia, possivelmente pois na própria estrutura da percepção a negatividade ficou depositada nas pessoas que atendemos.

Para finalizar, diria que tudo aquilo que foi exposto a respeito dos desencontros entre a vaca-louca e o pato-lógico não tem porque nos conduzir ao pessimismo. Se lançarmos um olhar panorâmico na história, a médio e longo prazo, de modo geral, atualmente as pessoas com diagnóstico psiquiátrico vivem melhor do que, por exemplo, antes das reformas psiquiátricas. É certamente este movimento adiante, rumo à “liberação do louco”, à humanização do tratamento e, sem dúvida, este movimento que busca o encontro, aquilo que revela um sem número de desencontros naquela que talvez seja a mais inepta das relações humanas, que é a relação entre o pato-lógico e a vaca-louca.

 

Notas:

[1] Apresentado na Jornada da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria, 2017.

 

Sobre o Autor:

Doutor em Psicologia pela UCM. Diretor do Centro de Día e do EASC Parla (Assessoria de Políticas Sociais e Família da CM, Fundação Manantial). Brasileiro, desde 1991 é o principal responsável pela difusão do Acompanhamento Terapêutico em Espanha. Formador e supervisor de profissionais. Autor do livro “Acompanhamento Terapêutico e Clínica do Cotidiano”, Aller editora, São Paulo.

E-mail: ldozza@yahoo.es